terça-feira, 17 junho, 2025
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O aroma de vida que desaparece quando falta afeto!

Regar consciências é tão imprescindível quanto regar jardins. Se meu vizinho desaparece sob a secura da vida, sou cúmplice silencioso do abandono.

Redação - Cidade AC News - Eliton Muniz

Sento-me na soleira da porta, observando aquele tapete amarelado que ocupa metade do quintal do meu vizinho. Não é só grama seca: é um grito mudo por atenção, um sinal de desgaste que parece combinar com a vida dele. Acorda antes do sol nascer, como sempre. Veste o uniforme já sem cor, marcado pelas cordas do varal e pelas lutas. Pega o carro popular, velho conhecido de guerra, que insiste em exalar aquele cheiro forte de combustível — e, toda vez que ela entra no carro, vem a pergunta: “até quando isso?” Não é só uma reclamação. É uma cobrança silenciosa que ecoa na consciência dele como uma martelada diária. Não é por falta de cuidado. É por prioridade. Mora perto, na borda do asfalto, onde o combustível rende mais e o caminho é mais curto — porque, no fim das contas, economizar virou sobrevivência. O dia é uma maratona sem pódio. Vai de um lado pro outro, resolvendo pepinos entre CNPJs, colégios, demandas, bicos e obrigações que nunca cessam. No trajeto, o pensamento vai longe. Quando isso muda? Quem muda? Quem ajuda? E quem sou eu pra cobrar mudança? Às vezes, só às vezes, ele se pergunta em silêncio: “Será que meus sonhos ainda estão vivos?” Em casa, a única certeza é a conta de pensão: invisível, mas pesada como chumbo. Os filhos do primeiro casamento recebem, mas nem sempre o que o coração gostaria de dar. E a mulher que ficou, infeliz, cobra algo que vai além de sustento do que tenho: quer o sabor da memória, a comida de mãe, o abraço que ele não sabe dar, não tem iniciativa de dar. Ele coloca no prato o pouco do que gosta, mas não do que gostaria: tutano de osso, pouca carne, – Como dizem: Comida de cachorro – uma proteína que é banquete para alguns, vergonha para ele. Ela lança lhe aos olhos: “Você só tem tempo para eles, mas nunca para mim.” – Esquecendo que eu não tenho tempo nem pra mim – A contradição o corrói — acusado de priorizar quem não deveria, cobrado por deixar de priorizar quem devia. Cada moeda poupada vai para o cofrinho — um frasco de vidro com inscrições infantis, guardando trocados que parecem migalhas de esperança. Lojas de Departamentos, Havan, Gazin, escola, cantina, : as parcelas se acumulam como nuvens escuras, prestes a desabar em tempestade de compromisso, mas honrosamente pagos fielmente – nome limpo! Quando chega a noite, o sono não vem fácil, partimos para os famosos controlados, os tarjas pretas, pra dormir e alguns outros pra acordar, afim de controlar os tremores, síndrome do pensamento acelerado, a preocupação da agenda do dia seguinte, e planos, planejamentos e possíveis sonhos que insistem em não morrer comigo…As vezes vem o descontrole, mas vem as ameaças, de ser denunciado a família, para chefe por falar de mais, de ser caracterizado como violento por bradar de frustração e desespero pela mudança que insiste em não chegar. Indagado: Já ouviu falar em medida protetiva? escuto o temor em sua voz, como se as palavras pudessem virar algemas antecipadamente. Caminho até a varanda, e vejo as roupas de loja populares penduradas num varal torto; ouço a abertura de latas de sardinha, embalagens de miojo, carne de pescoço e carne de canela; sinto o bafo do churrasquinho de esquina, quase um luxo gourmet para quem vive no limite de algumas coisas, e isso me trás exaustão emocional. No bolso, um remédio genérico pra controlar o incontrolável— mais um lembrete de que, quando a dor aperta, não há conforto extra. No pensamento não tem paredes de sustentação: a cabeça é refém de tábuas soltas e promessas quebradas. Falta espaço para o afeto crescer, falta vigas emocionais que suportem os embates diários. Reconhecimento? Recompensa? Termos raros no vocabulário do seu dia. E, ainda assim, ali está ele amanhã após amanhã, levantando com a força que sobra. Me vejo cansado — mas teimoso — a centelha que insiste em não se apagar. É a parte dele que sabe: por mais que todos esqueçam de regar, ainda é possível florir. Penso: quantos quintais secos existem ao nosso redor, escondidos atrás de muros de descaso? Quantas vidas pedem apenas um gesto de cuidado, uma gota de solidariedade? Não é preciso grande gesto. Às vezes, basta um prato quente entregue sem cobrança, um “como foi seu dia?” perguntado sem pressa, um “estou aqui” dito com sinceridade. Regar consciências é tão imprescindível quanto regar jardins. Se meu vizinho desaparece sob a secura da vida, sou cúmplice silencioso do abandono. E eu não quero assistir ao definhamento de alguém que se esforça tanto para sobreviver. Por isso, hoje, em vez de só regar meu próprio gramado, vou levar água até o amarelo dele. Compreendo que esse gesto possa parecer ínfimo diante de tanta angústia, mas sei também que cada gota é promessa de renovo. Que o cheiro de combustível do carro dele possa, um dia, se transformar no aroma de vida que desaparece quando falta afeto. E que o prato de ossos — hoje tutano — seja o primeiro passo para voltar a uma refeição de domingo, cheia de risos e memórias boas. Talvez o quintal dele nunca volte ao verde que eu conheço. Mas, se conseguirmos juntos, ele e eu, derrubar uma a uma as barreiras de abandono, quem sabe brote ali, entre os fios amarelados, a semente de uma nova esperança. E isso, mais do que qualquer lei ou cobrança, é o que de verdade faz alguém sentir-se valorizado — não só como trabalhador, como marido, como pai, mas como ser humano digno de cuidado e ternura.

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