No dia 8 de janeiro de 2023, Brasília viveu momentos de tensão com a invasão de prédios dos Três Poderes por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. O general Júlio César de Arruda, então comandante do Exército, esteve no centro das decisões que marcaram aquela noite. Em depoimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 22 de maio de 2025, ele revelou que a escolha de não prender imediatamente os acampados em frente ao Quartel-General do Exército foi coordenada com figuras-chave do governo Lula. A fala do militar reacende debates sobre a condução da crise e as responsabilidades envolvidas.
O depoimento ocorreu no âmbito da ação penal que investiga uma tentativa de golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder. Arruda foi ouvido como testemunha de defesa do tenente-coronel Mauro Cid e do ex-presidente. Suas declarações trouxeram novos detalhes sobre as negociações tensas entre militares e autoridades civis na noite dos atos golpistas. O general enfatizou que buscou acalmar os ânimos, evitando confrontos que poderiam agravar a situação.
Entre os pontos abordados, Arruda destacou:
- A coordenação com os ministros Flávio Dino, Rui Costa e José Múcio.
- A decisão de adiar a prisão dos acampados para a manhã seguinte.
- A ausência de mortes durante a operação, que ele atribuiu à abordagem cautelosa.
A audiência no STF, conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes, trouxe à tona episódios que ainda geram controvérsia. O depoimento do general é parte de um processo que busca esclarecer o papel de militares e civis nos eventos que abalaram a democracia brasileira.
Reunião tensa no QG do Exército
Na noite de 8 de janeiro, o Quartel-General do Exército em Brasília tornou-se o epicentro de decisões cruciais. Arruda relatou que chegou ao local por volta das 14 horas, após os ataques aos prédios do Congresso, Planalto e STF. Ele coordenou ações com o general Gustavo Dutra, comandante militar do Planalto, e acompanhou o retorno de manifestantes à Praça dos Cristais, onde estava o acampamento bolsonarista. A ordem judicial do ministro Alexandre de Moraes determinava a prisão imediata dos acampados, mas a execução foi adiada.
O general afirmou que a decisão envolveu discussões com o então ministro da Justiça, Flávio Dino, o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e o ministro da Defesa, José Múcio. Segundo Arruda, o clima era de nervosismo, e sua prioridade era evitar confrontos. Ele negou ter barrado a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) de entrar no acampamento, contradizendo o depoimento do então comandante da PMDF, Fábio Augusto Vieira. Arruda disse que apenas pediu coordenação para a operação.
A reunião no QG, conforme o militar, resultou em um acordo para desmobilizar o acampamento na manhã de 9 de janeiro. A operação envolveu ônibus para transportar os acampados, ambulâncias e um cordão de segurança formado por policiais e militares. A abordagem, segundo Arruda, foi planejada para minimizar riscos de violência.
Confronto verbal com a PMDF
Um dos momentos mais polêmicos do depoimento envolveu a suposta frase de Arruda ao comandante da PMDF. Segundo Fábio Augusto Vieira, o general teria dito, com dedo em riste: “O senhor sabe que minha tropa é um pouco maior que a sua, né?”. A declaração sugeria uma demonstração de força para impedir a entrada da polícia no acampamento. Arruda negou veementemente a fala, afirmando não se lembrar de tal interação.
Questionado pelo ministro Alexandre de Moraes, o general reiterou que sua intenção era acalmar a situação. Ele destacou que a presença de blindados Guarani na entrada do Setor Militar Urbano foi uma medida de segurança, não uma tentativa de intimidação. A cena, exibida por emissoras de televisão, mostrou tanques bloqueando o acesso da PMDF, o que alimentou críticas sobre a conduta do Exército.
O depoimento de Arruda trouxe à tona a complexidade das relações entre militares e forças policiais naquela noite. Enquanto a PMDF estava sob pressão para cumprir a ordem judicial, o Exército buscava evitar um conflito direto com os manifestantes, muitos dos quais eram apoiadores de Bolsonaro. A tensão entre as instituições foi resolvida apenas após horas de negociação.
Papel dos ministros na decisão
A participação de Flávio Dino, Rui Costa e José Múcio na decisão de adiar as prisões foi um ponto central do depoimento. Arruda afirmou que os ministros estavam presentes na reunião no QG e concordaram com a abordagem coordenada. Ele destacou que Flávio Dino, responsável pela pasta da Justiça, defendeu uma ação mais incisiva, mas acabou alinhando-se à estratégia de aguardar até a manhã seguinte.
José Múcio, como ministro da Defesa, teve um papel de mediação entre o Exército e o governo Lula. Sua proximidade com os militares, construída ao longo de décadas de carreira política, foi vista como um fator que facilitou o diálogo. Rui Costa, por sua vez, contribuiu para articular a logística da operação, que envolveu o uso de transporte público e forças de segurança do Distrito Federal.
Os três ministros optaram por não comentar o depoimento, conforme informou a assessoria de comunicação do STF. A ausência de declarações públicas reforça a delicadeza do tema, que continua a gerar debates sobre a relação entre o governo e as Forças Armadas.
Contexto da ação penal
A audiência de Arruda integra o julgamento que investiga uma suposta tentativa de golpe de Estado em 2022 e 2023. A ação penal apura a responsabilidade de figuras como Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e do próprio ex-presidente. Arruda foi indicado como testemunha de defesa por ambos, o que colocou suas ações em 8 de janeiro sob escrutínio.
O processo já ouviu testemunhas de acusação, como os ex-comandantes da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior, e do Exército, Marco Antônio Freire Gomes. Eles confirmaram que Bolsonaro discutiu medidas para reverter o resultado das eleições de 2022. As declarações de Arruda, embora menos incisivas, reforçam a narrativa de que as decisões tomadas na noite dos atos golpistas envolveram múltiplos atores do governo e das Forças Armadas.
A delação premiada de Mauro Cid, firmada com a Procuradoria-Geral da República, foi um marco na investigação. Cid forneceu detalhes sobre reuniões no Palácio do Alvorada e a atuação de militares próximos a Bolsonaro. Arruda, no entanto, evitou comentar esses aspectos, limitando-se a descrever sua conduta durante a crise.
- Principais pontos da ação penal:
- Investigação de uma trama golpista para manter Bolsonaro no poder.
- Envolvimento de militares e civis em reuniões preparatórias.
- Papel de Mauro Cid como elo entre Bolsonaro e outros acusados.
- Depoimentos de ex-comandantes que confirmam discussões antidemocráticas.
Transição entre governos
Arruda também foi questionado sobre a transição do governo Bolsonaro para o governo Lula no Exército. Ele afirmou que o processo ocorreu de forma normal, sem incidentes significativos. A escolha do general como comandante interino, ainda no governo Bolsonaro, foi resultado de um acordo entre José Múcio e o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira.
A nomeação seguiu o critério de antiguidade, com Arruda sendo o general quatro estrelas mais antigo na ativa. Apesar disso, sua passagem pelo comando foi breve. Em 21 de janeiro de 2023, apenas 23 dias após assumir, ele foi exonerado por Lula e substituído pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva. Arruda evitou comentar os motivos de sua saída, direcionando a pergunta ao presidente e aos responsáveis pela decisão.
A transição no Exército ocorreu em um momento de desconfiança mútua. Lula expressou publicamente insatisfação com a inteligência militar, que não antecipou os atos de 8 de janeiro. A demissão de Arruda foi vista como um sinal de que o governo buscava maior alinhamento com os novos comandantes.
Resistência à ordem de prisão
A ordem de prisão emitida por Alexandre de Moraes na noite de 8 de janeiro determinava a detenção imediata dos acampados. Arruda foi confrontado com a acusação de descumprir a decisão judicial, mas negou qualquer resistência. Ele afirmou que informou ao general Dutra a necessidade de coordenar a operação com o interventor federal na segurança do Distrito Federal, Ricardo Cappelli.
A intervenção de Cappelli, número dois do Ministério da Justiça, foi marcada por tensões. Ele determinou o envio de batalhões da PMDF e do Corpo de Bombeiros ao Setor Militar Urbano, mas encontrou resistência do Exército. Arruda destacou que a presença de cerca de 2 mil manifestantes no acampamento exigia uma abordagem cautelosa para evitar um confronto de grandes proporções.
A operação foi concluída na manhã de 9 de janeiro, com a prisão de centenas de bolsonaristas. A demora na execução da ordem judicial, no entanto, gerou críticas de membros do governo e do STF, que apontaram possível conivência de militares com os manifestantes.
Perfil de Júlio César de Arruda
Júlio César de Arruda, de 63 anos, tem uma carreira militar de mais de quatro décadas. Nascido em Cuiabá, ele ingressou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército aos 16 anos e formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1981. Ao longo de sua trajetória, comandou unidades em Itajubá, Rio de Janeiro, Cuiabá e Brasília.
Entre os cargos de destaque, Arruda foi chefe do Departamento de Engenharia e Construção do Exército e comandou o 1º Batalhão de Forças Especiais em Goiânia. Sua experiência em operações de segurança e administração militar o colocou como uma escolha natural para o comando do Exército em 2022.
- Marcos da carreira de Arruda:
- Ingresso no Exército em 1975.
- Comando do 1º Batalhão de Forças Especiais (2005-2006).
- Chefia do Departamento de Engenharia e Construção.
- Nomeação como comandante interino em dezembro de 2022.
Reações no STF e no governo
O depoimento de Arruda foi acompanhado com atenção por membros do STF e do governo. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, conduziu as perguntas com foco na conduta do Exército durante os atos golpistas. A menção aos ministros Flávio Dino, Rui Costa e José Múcio como parte da decisão de adiar as prisões trouxe um novo elemento ao julgamento.
A Procuradoria-Geral da República, representada por Paulo Gonet, buscou esclarecer se Arruda havia negado o acesso da PMDF ao acampamento. A negativa do general, aliada ao uso frequente da expressão “não lembro”, gerou questionamentos sobre a precisão de suas respostas. Mesmo assim, suas declarações reforçam a narrativa de que a crise foi gerida por meio de negociações entre militares e civis.
A ausência de comentários oficiais por parte dos ministros citados indica a intenção de evitar polêmicas adicionais. O STF, por sua vez, mantém o ritmo acelerado das audiências, com depoimentos de outros militares previstos para os próximos dias.
Episódios de tensão no 8 de janeiro
Os eventos de 8 de janeiro marcaram um dos momentos mais graves da história recente do Brasil. A invasão do Congresso, do Planalto e do STF por bolsonaristas resultou em depredações e roubos, com prejuízos estimados em milhões de reais. A resposta das forças de segurança foi criticada por sua lentidão, especialmente no que diz respeito à proteção dos prédios federais.
O acampamento em frente ao QG do Exército, montado desde novembro de 2022, era visto como uma base de apoio aos manifestantes. A presença de cerca de 2 mil pessoas no local na noite dos ataques dificultou a ação imediata da PMDF. Arruda destacou que a decisão de aguardar a manhã seguinte foi tomada para evitar um confronto que poderia resultar em vítimas.
A operação de desmobilização, realizada na segunda-feira, envolveu a prisão de centenas de manifestantes. Ônibus do transporte público de Brasília foram usados para transportar os detidos, enquanto ambulâncias ficaram de prontidão para atender eventuais feridos. A ausência de mortes, segundo Arruda, foi um indicativo do sucesso da abordagem coordenada.
Nomeação e exoneração de Arruda
A trajetória de Arruda como comandante do Exército foi marcada por sua brevidade. Nomeado interinamente em 30 de dezembro de 2022, ainda no governo Bolsonaro, ele foi confirmado no cargo por José Múcio em 6 de janeiro de 2023. Dois dias depois, os atos golpistas abalaram Brasília, colocando o general no centro de uma crise institucional.
Sua exoneração, em 21 de janeiro, foi anunciada após uma reunião com Lula, Múcio e outros comandantes das Forças Armadas. A decisão foi motivada por fatores como a resistência de Arruda em permitir prisões no acampamento e sua recusa em exonerar Mauro Cid de um comando em Goiânia. O tenente-coronel, investigado por transações financeiras ligadas a Bolsonaro, tornou-se um ponto de atrito entre o general e o governo.
Tomás Miguel Ribeiro Paiva, que assumiu o comando, era visto como uma figura mais alinhada com o discurso democrático. Em um discurso dias antes de sua nomeação, Paiva defendeu o respeito ao resultado das urnas, o que fortaleceu sua posição entre aliados de Lula.
- Fatores que levaram à exoneração de Arruda:
- Resistência à prisão imediata dos acampados.
- Recusa em exonerar Mauro Cid.
- Desconfiança de Lula em relação à inteligência militar.
- Necessidade de maior alinhamento com o novo governo.
Avanço das investigações
O julgamento no STF continua a esclarecer os eventos de 8 de janeiro e suas ramificações. Além de Arruda, outras sete testemunhas, todas militares, foram ouvidas na mesma audiência. A corte já colheu depoimentos de ex-comandantes e espera avançar na análise de provas documentais e eletrônicas.
A delação de Mauro Cid permanece como uma peça-chave na investigação. Suas revelações sobre reuniões no Palácio do Alvorada e a atuação de militares bolsonaristas orientam as perguntas do STF. Arruda, embora tenha evitado detalhes comprometedores, confirmou a existência de negociações de alto nível na noite dos atos golpistas.
O processo também examina a conduta de outros oficiais, como o general Gustavo Dutra, que liderava o Comando Militar do Planalto. A destituição de Dutra e de outros militares reflete a determinação do governo Lula em responsabilizar envolvidos nos eventos de 8 de janeiro.
Relação entre governo e militares
A crise de 8 de janeiro expôs fragilidades na relação entre o governo Lula e as Forças Armadas. A nomeação de José Múcio para a Defesa foi uma tentativa de apaziguar tensões, mas os eventos de janeiro testaram sua capacidade de mediação. A exoneração de Arruda, seguida pela dispensa de dezenas de militares do Gabinete de Segurança Institucional, sinalizou uma postura mais firme do Planalto.
Flávio Dino, como ministro da Justiça, adotou uma linha dura contra os golpistas, defendendo ações rápidas para desmobilizar os acampamentos. Sua visão contrastava com a abordagem mais cautelosa de Múcio, o que gerou divergências internas no governo. Rui Costa, por sua vez, atuou como um articulador, buscando equilibrar as demandas de segurança com a estabilidade política.
A audiência de Arruda no STF reforça a complexidade desse relacionamento. As declarações do general sugerem que, apesar das tensões, houve um esforço conjunto para gerir a crise sem escalar o conflito. O desfecho da operação, sem vítimas fatais, foi destacado por Arruda como um resultado positivo.