Sento-me na soleira da porta, observando aquele tapete amarelado que ocupa metade do quintal do meu vizinho. Não é só grama seca: é um grito mudo por atenção, um sinal de desgaste que parece combinar com a vida dele.
Ele acorda antes do sol, veste o uniforme, todos os dias parece ser a mesma roupa, pega o carro popular que sempre exala cheiro de combustível — não por falta de cuidado, mas por necessidade de sempre estar com tanque cheio. Roda com esse carro perfumando de gasolina, que provoca ate enxaqueca, roda pra rodar a casa, as finanças e a vida que não para. Trabalha, deixa, busca, entrega, visita e tudo de novo, e toda hora e todo dia.
Em casa, a única certeza é a conta de pensão: invisível, mas pesada como chumbo. Os filhos do primeiro casamento recebem o que a lei determina, mas nem sempre o que o coração gostaria de dar. E a mulher que ficou, exigente, cobra dele algo que vai além de sustento: quer o sabor da memória, a comida de mãe, a qualidade de roupa que nem ele usa, e o carro que eu acho que ela nunca teve e o abraço que ele não sabe dar ou nunca recebeu.
Ele coloca no prato o pouco que quase sempre sobra: tutano de osso, uma proteína que é banquete para alguns, vergonha para ele. Ela lança-lhe aos olhos: “Você só tem tempo para eles, mas nunca para mim.” A contradição o corrói — acusado de priorizar quem não deveria, cobrado por deixar de priorizar quem devia.
Cada moeda poupada vai para o cofrinho — um frasco de vidro com inscrições infantis, guardando trocados que parecem migalhas de esperança. Gazin, Havan, escola, cantina: as parcelas se acumulam como nuvens escuras, prestes a desabar em tempestade.
Quando chega a noite, o sono não vem fácil, mesmo com remedio pra doido. Ele tem receio de ser denunciado ao chefe por falar de mais, de ser caracterizado como violento por bradar de frustração. Já ouviu falar em medida protetiva: escuto o temor em sua voz, como se as palavras dele pudessem virar algemas…isso acabaria com a pouca honra e o pouco do orgulho que foi construido de muito tempo…e coloque tempo nisso!
Caminho até o portão improvisado, e vejo as roupas de loja barata penduradas num varal torto; roupas sem luxo e sem marcas importantes, porém me caem bem. Pareço ate quem não pareço.
Ele não tem paredes de sustentação: a casa é refém de tábuas soltas e promessas quebradas. Falta espaço para o afeto crescer, falta vigas emocionais que suportem os embates diários. Reconhecimento? Recompensa? Termos raros no vocabulário do seu dia a dia.
E, ainda assim, ali está ele amanhã após amanhã, levantando com a força que sobra. Vejo no olhar cansado — mas teimoso — a centelha que insiste em não se apagar. É a parte dele que sabe: por mais que todos esqueçam de regar, ainda é possível florir.
Penso: quantos quintais secos existem ao nosso redor, escondidos atrás de muros de descaso? Quantas vidas pedem apenas um gesto de cuidado, uma gota de solidariedade?
Não é preciso grande gesto. Às vezes, basta um prato quente entregue sem cobrança, um “como foi seu dia?” perguntado sem pressa, um “estou aqui” dito com sinceridade.
Regar consciências é tão imprescindível quanto regar jardins. Se meu vizinho desaparece sob a secura da vida, sou cúmplice silencioso do abandono. E eu não quero assistir ao definhamento de alguém que se esforça tanto.
Por isso, hoje, em vez de só regar meu próprio gramado, vou levar água até o amarelo dele. Compreendo que esse gesto possa parecer ínfimo diante de tanta angústia, mas sei também que cada gota é promessa de renovo.
Que o cheiro de combustível do carro dele possa, um dia, se transformar no aroma de vida que desaparece quando falta afeto. E que o prato de ossos — hoje tutano — seja o primeiro passo para voltar a uma refeição de domingo, cheia de risos e memórias boas.
Talvez o quintal dele nunca volte ao verde que eu conheço. Mas, se conseguirmos juntos, ele e eu, derrubar uma a uma as barreiras de abandono, quem sabe brote ali, entre os fios amarelados, a semente de uma nova esperança.
E isso, mais do que qualquer lei ou cobrança, é o que de verdade faz alguém sentir-se valorizado — não só como trabalhador, como marido, como pai, mas como ser humano digno de cuidado e ternura.