A partir de maio, o Sistema Único de Saúde (SUS) começa a implementar uma mudança histórica na prevenção do câncer de colo do útero, substituindo gradualmente o tradicional exame Papanicolau pelo teste molecular RT-PCR, conhecido como DNA-HPV. Com 97% de sensibilidade, o novo método detecta o papilomavírus humano (HPV), principal causador da doença, até dez anos antes do aparecimento de lesões pré-cancerígenas. A transição, que terá início em Pernambuco e alcançará 435 mil mulheres em um ano, promete maior precisão, intervalos maiores entre exames e acessibilidade, com a possibilidade de autocoleta. A iniciativa, aprovada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), reflete avanços científicos globais e reforça o compromisso do Brasil com a meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) de eliminar o câncer de colo do útero até 2030.
Essa mudança representa um marco na saúde pública brasileira. O câncer de colo do útero é o terceiro mais comum entre mulheres no país, com cerca de 17 mil novos casos anuais, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca). A cada 90 minutos, uma mulher morre vítima da doença, totalizando 6,5 mil óbitos por ano. O teste de DNA-HPV, desenvolvido com tecnologia nacional pelo Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), identifica 14 subtipos de HPV de alto risco, incluindo os tipos 16 e 18, responsáveis por 70% das lesões precursoras. Diferentemente do Papanicolau, que analisa alterações celulares, o novo exame detecta o material genético do vírus, permitindo intervenções precoces e tratamentos menos invasivos.
A implementação começará em Pernambuco, com Minas Gerais já demonstrando interesse em adotar o teste na fase inicial. A expansão ocorrerá ao longo de 2025 e 2026, acompanhada de treinamentos para equipes de saúde. O kit de testagem, aprovado pela Anvisa, utiliza a técnica de PCR em tempo real, eliminando riscos de falsos negativos e positivos. Além disso, o método é mais econômico a longo prazo, reduzindo custos com tratamentos de casos avançados, que frequentemente exigem radioterapia ou cirurgias complexas. A possibilidade de autocoleta, em que a mulher coleta o material em casa com um kit, também facilita o acesso, especialmente em regiões remotas.
Por que o Papanicolau está sendo substituído
O exame Papanicolau, utilizado no Brasil desde os anos 1980, foi essencial para reduzir a mortalidade por câncer de colo do útero, mas apresenta limitações. Com desempenho considerado mediano, o método depende da análise humana de células coletadas do colo do útero, o que pode levar a falsos negativos ou falhas na detecção de lesões precoces. Estudos apontam que o Papanicolau pode não identificar tumores em estágios iniciais, resultando em diagnósticos tardios, quando as chances de cura caem para cerca de 40%. No cenário atual, 70% dos casos no Brasil são detectados em fases avançadas, exigindo tratamentos mais agressivos e dispendiosos.
O teste de DNA-HPV, por outro lado, oferece maior sensibilidade e precisão. Ele detecta a presença do vírus antes mesmo de alterações celulares visíveis, permitindo intervenções em estágios silenciosos da infecção. A OMS recomenda o método como padrão para rastreamento desde 2021, devido à sua eficácia na redução de casos e óbitos. Países como Austrália, Inglaterra e Suécia já adotaram o exame molecular, com resultados significativos na prevenção. No Brasil, a experiência pioneira em Indaiatuba, São Paulo, iniciada em 2017, demonstrou que o teste antecipa o diagnóstico em até dez anos, com uma média de idade de detecção de 39,6 anos, contra 49,3 anos do Papanicolau.
A transição para o novo exame também responde a desafios logísticos. Entre 2021 e 2023, apenas três estados brasileiros alcançaram cobertura de 50% do público-alvo com o Papanicolau. Em regiões como Acre, Maranhão e Mato Grosso, a maioria dos resultados foi entregue após 30 dias, atrasando exames confirmatórios e tratamentos. O teste de DNA-HPV, com maior intervalo entre coletas (de três para cinco anos em caso de resultado negativo), reduz a sobrecarga no sistema de saúde e agiliza o processo diagnóstico.
- Maior sensibilidade: O DNA-HPV detecta o vírus com 97% de precisão, contra a taxa mediana do Papanicolau.
- Autocoleta: Mulheres podem realizar o exame em casa, aumentando a adesão em áreas remotas.
- Intervalo estendido: Resultados negativos permitem repetir o teste após cinco anos, em vez de três.
- Diagnóstico precoce: Identifica riscos até dez anos antes do aparecimento de lesões.
Como funciona o teste de DNA-HPV
O procedimento de coleta do teste de DNA-HPV é semelhante ao do Papanicolau, mas com diferenças significativas na análise. Durante uma consulta ginecológica, o profissional de saúde utiliza um swab para coletar células do colo do útero, que são armazenadas em um tubo com meio líquido. O material é então analisado por máquinas automatizadas que identificam o DNA do vírus, eliminando a subjetividade da análise humana. Em caso de resultado positivo para subtipos de alto risco, como 16 ou 18, a paciente é encaminhada diretamente para uma colposcopia, exame que avalia lesões no colo do útero.
A autocoleta é uma das inovações mais promissoras. A mulher recebe um kit com instruções claras para coletar o material vaginal em casa, inserindo um swab estreito na vagina por cerca de três polegadas. O processo é simples, indolor e reduz o desconforto psicológico associado a consultas ginecológicas, especialmente para mulheres- Autocoleta: Facilita o acesso em comunidades distantes, onde a infraestrutura de saúde é limitada.
- Precisão: A tecnologia RT-PCR garante resultados confiáveis, com risco quase zero de falsos negativos.
- Conforto: A autocoleta elimina a necessidade de estribos e espéculos, tornando o exame menos invasivo.
- Inclusão: O método é adaptado para pessoas transgênero, não binárias e intersexuais, com diretrizes específicas.
O teste é recomendado para mulheres de 25 a 64 anos com vida sexual ativa. Após dois exames anuais consecutivos com resultado normal, a repetição ocorre a cada cinco anos, desde que não haja detecção de subtipos oncogênicos. Essa abordagem reduz a frequência de exames, alivia a pressão sobre o sistema de saúde e garante maior conforto às pacientes.

Impactos na saúde pública brasileira
A substituição do Papanicolau pelo teste de DNA-HPV é parte de uma estratégia mais ampla para combater o câncer de colo do útero no Brasil. A doença, causada em 99% dos casos pelo HPV, é altamente prevenível com vacinação e rastreamento adequado. O SUS oferece a vacina contra o HPV gratuitamente para jovens de 9 a 14 anos, em dose única, com o objetivo de proteger a população antes do início da vida sexual. Combinada com o novo teste, a vacinação pode levar à erradicação do câncer de colo do útero em cerca de 20 anos, segundo especialistas.
O impacto econômico também é significativo. Embora o teste molecular tenha um custo inicial mais elevado, ele reduz despesas com tratamentos de casos avançados, como radioterapia e cirurgias. Em Indaiatuba, estudos de custo-efetividade mostraram que o sistema de saúde gasta menos com o DNA-HPV do que com o Papanicolau, devido à menor necessidade de intervenções complexas. Além disso, a detecção precoce permite redirecionar recursos para outras áreas, como o tratamento de outros tipos de câncer.
A implementação do teste exige capacitação de profissionais de saúde, especialmente enfermeiros, que desempenham um papel central na coleta. A Atenção Primária à Saúde (APS) será responsável pela execução, com treinamentos previstos para 2025 e 2026. O rastreamento organizado, com convocação ativa das pacientes, também será essencial para aumentar a cobertura, especialmente em regiões como o Norte, onde a mortalidade por câncer de colo do útero é a mais alta do país, representando 15,4% dos óbitos por câncer em mulheres.
Desafios da implementação no SUS
Apesar dos avanços, a transição enfrenta obstáculos. O Brasil possui dimensões continentais, com desigualdades regionais e limitações de acesso a serviços de saúde, especialmente em áreas rurais e periféricas. O Conselho Federal de Medicina (CFM) alerta que a substituição do Papanicolau exige planejamento robusto para evitar falhas logísticas. A coleta do Papanicolau já enfrenta desafios, como atrasos na entrega de resultados e baixa adesão em algumas regiões, e o teste de DNA-HPV demandará investimentos em infraestrutura e treinamento.
A experiência de Indaiatuba, onde o Papanicolau foi completamente substituído pelo DNA-HPV desde 2017, serve como modelo. Lá, mais de 85% das mulheres com resultados alterados foram avaliadas e tratadas, invertendo o cenário nacional de diagnósticos tardios. No entanto, escalar essa iniciativa para o país inteiro exige coordenação entre o Ministério da Saúde, estados e municípios. A falta de um sistema informatizado para rastreamento também é um entrave, já que ele seria crucial para convocar pacientes e evitar exames desnecessários.
- Desigualdades regionais: Regiões como o Norte e o Nordeste têm menor acesso a serviços de saúde, exigindo estratégias específicas.
- Capacitação: Enfermeiros e médicos precisam de treinamento para realizar a coleta e interpretar resultados.
- Logística: A distribuição de kits de autocoleta em áreas remotas é um desafio operacional.
Cronograma de adoção do teste
A implementação do teste de DNA-HPV seguirá um cronograma gradual, com marcos definidos pelo Ministério da Saúde:
- Maio de 2025: Início da distribuição em Pernambuco, com meta de alcançar 435 mil mulheres em um ano.
- Meados de 2025: Expansão para Minas Gerais e outros estados interessados.
- 2025-2026: Treinamento de equipes de saúde e distribuição nacional do kit Biomol HPV Alto Risco.
- 2026: Consolidação do teste como método principal de rastreamento no SUS, com foco na Atenção Primária à Saúde.
Esse calendário reflete o compromisso do SUS em alinhar-se às diretrizes da OMS, que desde 2013 recomenda o teste de DNA-HPV como padrão global. A aprovação do kit nacional pela Anvisa, em 2024, foi um passo crucial, garantindo autonomia tecnológica ao Brasil. O IBMP, responsável pelo desenvolvimento, já iniciou as validações clínicas no Inca, com resultados promissores.
Benefícios para grupos vulneráveis
O teste de DNA-HPV também prioriza a inclusão de grupos historicamente negligenciados. Mulheres negras, indígenas e de baixa renda, que enfrentam barreiras de acesso à saúde, são as mais afetadas pelo câncer de colo do útero. A autocoleta e o rastreamento ativo buscam alcançar essas populações, reduzindo disparidades. Além disso, as novas diretrizes do SUS incluem orientações para o atendimento de pessoas transgênero, não binárias e intersexuais, garantindo que o exame seja acessível e respeitoso.
Em regiões remotas, como comunidades ribeirinhas e indígenas, a autocoleta pode ser uma solução prática. Kits podem ser distribuídos por agentes comunitários de saúde, que já atuam nessas áreas, eliminando a necessidade de deslocamentos longos até unidades de saúde. Essa abordagem foi testada com sucesso em projetos-piloto em Recife, Pernambuco, e pode ser ampliada com a expansão do programa.
A combinação de vacinação, rastreamento e inclusão social posiciona o Brasil como um potencial líder na eliminação do câncer de colo do útero na América Latina. A experiência de Indaiatuba, aliada ao avanço tecnológico do kit Biomol, demonstra que é possível transformar a saúde pública com planejamento e inovação.
O que esperar do futuro
A substituição do Papanicolau pelo teste de DNA-HPV marca um avanço significativo na luta contra o câncer de colo do útero. Com maior precisão, acessibilidade e conforto, o método tem o potencial de salvar milhares de vidas anualmente, especialmente entre as mulheres mais vulneráveis. A meta da OMS de erradicar a doença até 2030 depende de esforços conjuntos, e o Brasil está dando passos importantes nessa direção.
A longo prazo, o impacto do teste será medido pela redução de casos avançados e óbitos. A experiência internacional mostra que países com alta cobertura de vacinação e rastreamento molecular conseguiram diminuir drasticamente a incidência da doença. No Brasil, o sucesso dependerá da capacidade de superar desafios logísticos e garantir que todas as mulheres, independentemente de onde vivam, tenham acesso ao exame.
- Prevenção primária: A vacinação contra o HPV para jovens de 9 a 14 anos é essencial para reduzir a circulação do vírus.
- Rastreamento organizado: A convocação ativa de pacientes aumentará a adesão ao teste.
- Inovação tecnológica: O kit nacional fortalece a soberania do Brasil na produção de insumos médicos.
O SUS, ao adotar o teste de DNA-HPV, reafirma seu papel como um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, capaz de implementar mudanças estruturais em benefício da população. A partir de maio, as mulheres brasileiras terão acesso a uma ferramenta que não apenas detecta o risco de câncer com antecedência, mas também promove dignidade e equidade no cuidado com a saúde.