A pequena Aurora Maria Oliveira Mesquita, com apenas quatro dias de vida, está entubada na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) da Maternidade Bárbara Heliodora, em Rio Branco. A bebê apresenta queimaduras severas nos membros inferiores — lesões típicas de escaldadura térmica —, que, segundo a família, ocorreram após um banho com água em temperatura inadequada no Hospital da Mulher e da Criança do Juruá, em Cruzeiro do Sul. O caso escancarou uma possível falha em protocolos básicos de enfermagem e lançou um alerta: como um erro tão primário pôde acontecer em uma unidade neonatal?
O banho que virou emergência médica
Banhar um recém-nascido em ambiente hospitalar requer técnica, atenção e protocolo. Em vez de proporcionar conforto, o banho de Aurora gerou trauma. O pai, Marcos Silva Oliveira, denunciou a equipe da unidade após notar descolamento da epiderme e bolhas, configurando lesão térmica tipo 2º grau. “Ela estava bem. Depois do banho, a pele das pernas começou a soltar. É revoltante”, relatou.
Aurora foi transferida com urgência para Rio Branco em UTI aérea, onde permanece sob suporte ventilatório invasivo, sedação e curativos especiais com agentes tópicos cicatrizantes.
O que diz o protocolo de enfermagem para banhos neonatais?
De acordo com o Manual de Assistência Neonatal do Ministério da Saúde, a temperatura da água utilizada no banho de recém-nascidos deve estar entre 36,5°C e 37,5°C, compatível com a temperatura corpórea do neonato. Para garantir segurança, o protocolo exige:
•Uso de termômetro digital de imersão para medir a temperatura da água antes do banho;
•Verificação manual com o dorso da mão ou punho apenas como etapa complementar, nunca substitutiva ao uso do termômetro;
•Registro em prontuário do horário, nome do profissional, temperatura da água e sinais vitais da criança antes e após o procedimento;
•Presença mínima de dois profissionais em banhos hospitalares de RN: um para manipulação direta e outro para suporte.
“O uso do cotovelo ou mão como único método de aferição de temperatura é considerado falha técnica grave, pois não garante precisão e segurança ao paciente neonatal” — Associação Brasileira de Enfermagem Neonatal (ABENFO).
O que pode ter falhado no caso Aurora?
Segundo fontes internas da própria unidade, não há registro da aferição da temperatura da água no prontuário da bebê Aurora Maria. Além disso, não foi confirmado se o banho foi acompanhado por outro profissional de retaguarda. A ausência de termômetro, a ausência de dupla checagem e a falha no registro sugerem quebra direta de protocolo assistencial e falha sistêmica de supervisão técnica.
A profissional responsável foi afastada preventivamente pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesacre), que instaurou Procedimento Administrativo Disciplinar. O Ministério Público do Estado também solicitou informações técnicas e o plano de contingência da unidade.
Diagnóstico contestado e dor ampliada
Foi cogitada uma outra possibilidade, porém contestada pelos pais. A equipe médica do hospital inicialmente levantou a hipótese de epidermólise bolhosa (EB), uma genodermatose rara e hereditária que afeta a proteína de adesão entre a derme e a epiderme, fazendo com que a pele se torne extremamente frágil, a ponto de formar bolhas e descolamentos com atritos mínimos. Existem formas simples e formas letais da doença, que, em recém-nascidos, podem se manifestar logo nas primeiras horas de vida.
Contudo, os pais contestaram veementemente essa possibilidade. “Querem desviar o foco, mas minha filha estava saudável, nasceu bem. Isso aconteceu só depois do banho. Não aceitamos essa justificativa”, afirmou o pai, Marcos Silva Oliveira.
A contestação dos pais se baseia não apenas na observação clínica empírica, mas também na ausência de histórico familiar compatível com a patologia, na distribuição simétrica e localizada das lesões — típicas de queimadura por imersão — e na cronologia do quadro, que surgiu imediatamente após o procedimento de higiene. Além disso, relatos médicos da transferência mencionam bolhas com fluido seroso, necrose parcial e descolamento epidérmico nos membros inferiores, com preservação de mucosas e demais regiões do corpo — um padrão que não condiz com os quadros clássicos generalizados de epidermólise.
Diante da gravidade das lesões e da divergência diagnóstica, foi realizada coleta de material para painel molecular genético, a fim de investigar variantes nos genes KRT5, KRT14, COL7A1, entre outros marcadores associados à EB. Entretanto, enquanto o laudo não for concluído, o protocolo clínico segue sendo o de manejo de queimaduras térmicas em recém-nascido, com curativos estéreis, analgesia contínua, antibioticoterapia profilática e controle rigoroso de infecção hospitalar.
O caso segue sob supervisão da equipe de neonatologia, pediatria clínica, genética médica e infectologia hospitalar, com documentação fotográfica diária da evolução das lesões.
Ação judicial e responsabilização institucional
A promotoria plantonista entrou com ação civil pública determinando:
•Internação imediata da RN em UTIN com suporte completo;
•Tratamento Fora de Domicílio (TFD), caso necessário;
•Custos integralmente cobertos pelo Estado;
•Acompanhamento psicológico à família;
•Monitoramento do Conselho Tutelar.
“Mesmo que se comprove uma doença de base, o dano foi ocasionado em ambiente assistencial. Isso exige zelo redobrado e não se justifica pela complexidade do quadro”, afirmou a promotora Aretuza de Almeida Cruz.
Quais os próximos desdobramentos? O que muda na prática assistencial neonatal?
Após o episódio, o Hospital da Mulher e da Criança do Juruá enfrenta agora a necessidade de revisar urgentemente os seus fluxos assistenciais, protocolos de segurança do paciente e condutas de enfermagem neonatal. As investigações administrativas e judiciais ainda estão em curso, mas medidas iniciais já foram adotadas:
Medidas já implementadas:
•Afastamento da profissional envolvida;
•Abertura de Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD);
•Revisão emergencial dos POPs (Protocolos Operacionais Padrão) do banho neonatal;
•Restrição temporária da realização de banhos apenas por enfermeiros obstetras e neonatais com certificação ativa em cuidados intensivos, até o recredenciamento dos demais profissionais;
•Intensificação das atividades de supervisão de enfermagem nas unidades de internação neonatal;
•Implementação do duplo check: nenhum banho será realizado sem a presença de dois profissionais devidamente identificados em livro de ocorrência clínica.
Medidas esperadas nos próximos dias:
•Capacitação obrigatória de toda a equipe técnica (enfermeiros e técnicos) com carga horária mínima de 8 horas em Boas Práticas Neonatais, com certificação auditável;
•Aquisição e uso obrigatório de termômetros clínicos digitais de imersão em todas as unidades de internação;
•Instalação de sinalização visual e orientações afixadas nas salas de banho, com a faixa de temperatura segura recomendada entre 36,5°C e 37,5°C;
•Registro sistemático da temperatura da água e dados vitais do RN no prontuário eletrônico e livro físico de enfermagem, conforme normas da Anvisa;
•Criação de um comitê de segurança neonatal com atuação preventiva, revisando incidentes e quase-erros mensalmente;
•Oficialização do protocolo de “banho supervisionado” para neonatos com condições clínicas instáveis ou de baixo peso (<2.500g);
•Ampliação do programa de humanização e escuta ativa com os pais, para garantir transparência nos processos assistenciais.
Quando o acolhimento se transforma em dor — para onde iremos?
O caso Aurora Maria não pode ser minimizado. É mais do que um erro técnico: é a síntese de um sistema que ainda permite improvisos em procedimentos vitais. Aonde iremos, se até o primeiro banho hospitalar pode se transformar em tortura térmica? Quem responde por isso?
Quando um recém-nascido sofre queimaduras graves no colo de um hospital, o que dizer às milhares de mães que ainda confiam no sistema público de saúde para dar à luz com segurança?
A saúde pública precisa ser, antes de tudo, território de proteção. Não se trata apenas de punir um erro. Trata-se de rever fluxos, treinar equipes, reforçar fiscalização e garantir a dignidade de cada paciente — mesmo que pese apenas 3 kg.
Situação Atual
Aurora segue intubada, sedada e com suporte clínico intensivo. Os exames laboratoriais e genéticos estão em andamento. Uma equipe multidisciplinar acompanha o caso, e a possibilidade de transferência para centro especializado em queimaduras neonatais fora do Acre é analisada.
O Cidade AC News manifesta sua mais profunda solidariedade à família de Aurora Maria Oliveira Mesquita. Em preces e orações, nos unimos à esperança por sua recuperação, acreditando na força da vida, na competência médica e no poder da fé para que o milagre aconteça.
Por Eliton Muniz – 25 de junho de 2025
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