O governo italiano oficializou uma mudança significativa em sua legislação de cidadania, restringindo o reconhecimento da nacionalidade por direito de sangue, o chamado ius sanguinis, apenas a filhos e netos de cidadãos italianos natos. A nova diretriz, aprovada pelo Conselho de Ministros e já em vigor desde o fim de março, altera drasticamente o acesso à cidadania para milhões de descendentes de italianos ao redor do mundo, especialmente na América Latina, onde países como Brasil e Argentina concentram as maiores comunidades de origem italiana fora da Europa. Com a reformulação, perde-se o direito automático de requerer cidadania com base em ancestrais mais distantes, como bisavós ou tataravós italianos.
A medida, segundo o governo italiano, tem como objetivo evitar o uso indiscriminado do reconhecimento de nacionalidade por indivíduos sem vínculos reais com o país. A justificativa política aponta também a tentativa de conter o que chamam de “comercialização do passaporte italiano”, utilizado por muitos descendentes como porta de entrada para o mercado europeu. Os efeitos são imediatos e impactam diretamente milhares de brasileiros que aguardavam o andamento de processos baseados em ascendência mais remota.
No Brasil, o impacto é considerável. Estimativas indicam que mais de 30 milhões de brasileiros têm algum grau de ascendência italiana, e o país vinha registrando aumento nas concessões de cidadania por via administrativa ou judicial. Em 2024, foram mais de 20 mil reconhecimentos confirmados, número que tende a cair bruscamente diante das novas exigências.
Mudança histórica nas regras do ius sanguinis
A alteração representa um divisor de águas na política de cidadania italiana, especialmente por envolver um dos fundamentos mais tradicionais da nacionalidade no país. O princípio do ius sanguinis esteve historicamente ligado à identidade italiana e foi mantido como eixo central das políticas migratórias mesmo após o fim das grandes levas migratórias entre os séculos XIX e XX. A nova limitação a apenas duas gerações diretas — pai ou mãe e avô ou avó nascidos na Itália — modifica a base de interpretação jurídica até então vigente, que permitia o reconhecimento da cidadania por descendência direta mesmo em casos com múltiplas gerações intermediárias.
A Itália vinha permitindo que brasileiros com bisavôs ou até tataravôs italianos solicitassem a cidadania, desde que conseguissem comprovar, com documentação robusta, a linha de descendência sem interrupções. A decisão do governo de Giorgia Meloni reflete uma linha mais nacionalista e conservadora, que busca frear o aumento exponencial do número de novos cidadãos sem conexão atual com o país europeu.
Além da limitação geracional, as novas regras exigem que italianos naturalizados e cidadãos nascidos e residentes fora da Itália comprovem, a cada 25 anos, o exercício de “direitos e deveres” ligados à cidadania. A medida inclui, de forma subjetiva, a manutenção de “laços genuínos” com o país, termo que ainda carece de regulamentação clara, mas que pode envolver participação em eleições, manutenção de residência ou atividades culturais e econômicas relacionadas à Itália.
Repercussão entre brasileiros e número de afetados
O Brasil figura como um dos países mais impactados pelas novas medidas, tanto pela quantidade de descendentes italianos quanto pelo volume de processos em andamento nos consulados e tribunais da Itália. Em 2022, o número de brasileiros reconhecidos como cidadãos italianos girou em torno de 14 mil. Já em 2024, esse número alcançou os 20 mil. Com a nova limitação, uma parte significativa desses solicitantes perde o direito imediato de pleitear a cidadania.
As filas nos consulados italianos, que já registravam tempo de espera superior a dez anos em algumas regiões, devem passar por revisão para excluir automaticamente processos que não atendam mais aos critérios legais. Juristas especializados na área afirmam que a mudança vai gerar uma onda de arquivamentos e indeferimentos, além de estimular a judicialização por parte de famílias que já haviam iniciado o procedimento com base na norma anterior.
Estimativas e números que explicam o impacto da medida
Custo elevado e novos entraves burocráticos
O aumento nas taxas de solicitação também faz parte do pacote de mudanças. A partir de janeiro de 2025, o valor cobrado pelos consulados italianos para o reconhecimento da cidadania por descendência passou de 300 para 600 euros por requerente adulto. A justificativa oficial é a de readequar os custos administrativos, mas especialistas apontam que se trata também de um instrumento de desestímulo para a avalanche de novos pedidos.
Combinadas, as novas exigências legais e o aumento nas taxas representam um novo cenário de acesso restrito à nacionalidade italiana. Muitos descendentes que planejavam iniciar o processo precisarão reavaliar suas possibilidades, e parte significativa da demanda deve migrar para outras vias de regularização, como residência por estudo ou trabalho, especialmente na busca de uma porta de entrada para a União Europeia.
Histórico da migração italiana e raízes na América Latina
A relevância da medida ganha ainda mais dimensão quando se considera o contexto histórico da imigração italiana para países como Brasil, Argentina e Uruguai. Entre o fim do século XIX e início do século XX, mais de 1,5 milhão de italianos migraram para o Brasil, sobretudo para os estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Na Argentina, esse número ultrapassa os 2 milhões. Essas comunidades formaram bases culturais e familiares que perpetuaram o vínculo com a Itália por gerações.
Até hoje, descendentes mantém tradições, sobrenomes, idiomas regionais e práticas culturais associadas à terra de origem dos antepassados. O reconhecimento da cidadania italiana por esses laços era visto por muitos como uma forma de reconexão legítima com a herança cultural e histórica. Ao limitar esse direito, o governo italiano impõe uma redefinição do conceito de pertencimento.
Regiões mais afetadas no Brasil e demanda reprimida
Judicialização e incertezas para processos em andamento
Uma das principais dúvidas geradas pela nova legislação diz respeito à validade de processos em andamento, tanto administrativos quanto judiciais. O governo ainda não apresentou diretrizes específicas sobre o tratamento de pedidos iniciados antes da reforma. Advogados de imigração alertam para um possível aumento de ações judiciais que contestem a retroatividade da nova norma, especialmente em casos com prazos de espera superiores a uma década.
A jurisprudência italiana costuma ser conservadora em decisões que envolvem temas de cidadania, mas há precedentes favoráveis à manutenção de direitos em casos iniciados sob a vigência da legislação anterior. Enquanto isso, consulados italianos no Brasil aguardam instruções detalhadas do Ministério das Relações Exteriores para saber como proceder com os dossiês já protocolados.
Dificuldades para filhos de imigrantes e debate sobre dupla cidadania
A nova legislação também reacende o debate sobre os critérios adotados pela Itália para conceder cidadania a imigrantes que residem no próprio país. Enquanto netos e bisnetos de italianos no exterior tinham, até então, acesso amplo à nacionalidade, filhos de estrangeiros nascidos na Itália enfrentam obstáculos legais para sua naturalização. Essa contradição histórica tem sido criticada por juristas e organizações de direitos humanos, e pode ganhar ainda mais força diante da nova postura restritiva.
Especialistas afirmam que o princípio do ius sanguinis, ao ser reduzido, precisa ser acompanhado de maior clareza e justiça nas regras do ius soli, ou seja, da nacionalidade por nascimento em solo italiano. O atual modelo italiano não reconhece automaticamente a cidadania de filhos de imigrantes nascidos em território nacional, o que contribui para uma série de distorções no reconhecimento do pertencimento social e legal.
Cidadania por residência continua sendo opção, mas com exigências rígidas
Apesar da restrição na cidadania por descendência, a legislação italiana ainda permite o acesso à nacionalidade por residência legal contínua. Estrangeiros que residem legalmente no país por um período de 10 anos — ou menos, no caso de cidadãos da União Europeia — podem solicitar a cidadania italiana por naturalização. No entanto, essa modalidade exige comprovação de renda, conhecimento da língua italiana e ausência de antecedentes criminais, além de passar por um longo trâmite burocrático.
Brasileiros que se mudam para a Itália em busca da nacionalidade devem se preparar para um processo complexo, com exigência de integração efetiva à sociedade italiana. Essa via é vista como alternativa viável para descendentes que não se enquadram mais na nova regra do ius sanguinis.