Netinho de Paula relembra soco em Vesgo no Dia da Consciência Negra: “Piadinha não cabe”
A trajetória de Netinho de Paula, marcada por sucessos nos anos 1990 com o Negritude Júnior, vai além dos palcos do pagode. O cantor, que conquistou o público com hits como “Cohab City” e “Beijo Geladinho”, expandiu sua influência para a televisão, apresentando programas e fundando a TV da Gente, um marco na representatividade negra na mídia brasileira. No entanto, um episódio ocorrido em 20 de novembro de 2005, Dia da Consciência Negra, trouxe à tona um momento polêmico de sua carreira: o soco desferido contra Rodrigo Scarpa, o Repórter Vesgo, do extinto programa “Pânico na TV”. Durante uma entrevista recente no podcast “Papagaio Falante”, Netinho revisitou o caso, explicando os motivos que o levaram a reagir fisicamente e criticando o humor desrespeitoso que, segundo ele, ultrapassou limites culturais e éticos.
O incidente aconteceu durante a inauguração da TV da Gente, um projeto ambicioso que buscava dar voz à comunidade negra e periférica. A data escolhida para o lançamento, 20 de novembro, não foi por acaso: o Dia da Consciência Negra é um marco de reflexão sobre a luta contra o racismo e a valorização da cultura afro-brasileira. Naquele dia, enquanto senhoras negras eram homenageadas, Vesgo, conhecido por suas abordagens provocadoras, insistiu em brincadeiras que Netinho considerou ofensivas. Após pedir três vezes para que o humorista parasse, sem sucesso, o cantor reagiu com um soco. “Ninguém bate por nada”, afirmou Netinho, destacando a gravidade do desrespeito em um momento de celebração e luta.
A reação de Netinho gerou debates sobre os limites do humor e a responsabilidade de programas televisivos. O cantor, que sempre defendeu a causa racial, explicou que o 20 de novembro é um dia de reflexão, comparável à importância que o Holocausto tem para a comunidade judaica. Para ele, o humor praticado pelo “Pânico na TV” naquela ocasião não apenas desrespeitou a data, mas também reforçou estereótipos prejudiciais. A agressão, embora controversa, foi para Netinho uma forma de proteger a dignidade de um momento histórico.
A criação da TV da Gente em 2005 representou um marco na história da mídia brasileira. Idealizada por Netinho de Paula, a emissora tinha como objetivo promover a diversidade e dar espaço a narrativas que raramente encontravam lugar na televisão aberta. O projeto atraiu atenção nacional, mas o incidente com Vesgo acabou ofuscando o lançamento. A agressão foi amplamente noticiada, polarizando opiniões: enquanto alguns apoiaram Netinho, considerando a atitude uma resposta ao desrespeito, outros criticaram a violência, defendendo a liberdade de expressão do humor.
Netinho, durante o podcast, reforçou que sua reação foi motivada por um acúmulo de provocações. Ele mencionou que, antes do soco, tentou dialogar com Vesgo, pedindo que respeitasse o contexto do evento. A insistência do humorista, no entanto, levou à escalada do conflito. O cantor também destacou que o “Pânico na TV” fazia parte de uma onda de humor importado, que ele classificou como desrespeitoso. “Era uma fase que o Brasil viveu”, disse, apontando para a popularidade de programas que usavam a humilhação como ferramenta cômica.
Netinho de Paula começou sua carreira como vocalista do Negritude Júnior, grupo que se tornou um dos pilares do pagode paulistano nos anos 1990. Canções como “Tanajura” e “Gente da Gente” marcaram uma geração, trazendo letras que valorizavam a autoestima negra e a vida nas periferias. O sucesso musical abriu portas para a televisão, onde Netinho se destacou em projetos como o quadro “Dia de Princesa”, no qual transformava a vida de mulheres anônimas, e a série “Turma do Gueto”, que abordava questões sociais de forma acessível.
A transição para a mídia televisiva não foi apenas uma mudança de carreira, mas uma extensão de seu ativismo. Netinho sempre se posicionou como defensor da igualdade racial, usando sua visibilidade para combater o racismo estrutural. A fundação da TV da Gente foi um passo ousado nesse sentido, mas também trouxe desafios. O incidente com Vesgo, embora isolado, ilustrou as tensões enfrentadas por figuras públicas que lutam por representatividade em um contexto de mídia muitas vezes insensível às questões raciais.
O cantor também enfrentou consequências legais pelo episódio. Em 2010, Vesgo venceu uma ação judicial contra Netinho, recebendo uma indenização de R$ 45 mil por danos morais. Em 2014, outra ação, dessa vez por calúnia, resultou em mais R$ 18 mil para o humorista. Apesar das derrotas judiciais, Netinho nunca recuou de sua posição. Em entrevistas posteriores, como no programa “Agora É Tarde”, ele reiterou sua postura contra o racismo e a importância de respeitar datas como o Dia da Consciência Negra.
O “Pânico na TV”, exibido entre 2003 e 2012 na RedeTV! e posteriormente na Band, foi um dos programas mais populares e controversos da televisão brasileira. Inspirado em formatos internacionais, como o americano “Jackass”, o programa apostava em esquetes irreverentes e entrevistas provocadoras, muitas vezes ultrapassando os limites do bom senso. Personagens como Vesgo e Silvio Santos Falso, interpretados por Rodrigo Scarpa e Wellington Muniz, tornaram-se ícones da cultura pop, mas também alvo de críticas por abordagens que reforçavam estereótipos raciais, de gênero e sociais.
Netinho, ao criticar o humor do “Pânico”, tocou em um ponto sensível: a linha tênue entre liberdade de expressão e desrespeito cultural. Ele mencionou, por exemplo, o personagem Mano Quietinho, interpretado por Eduardo Sterblitch, que considerava divertido e respeitoso. Em contrapartida, as provocações de Vesgo no Dia da Consciência Negra foram, para o cantor, uma afronta à luta antirracista. “Cultura não é brincadeira”, afirmou, destacando a necessidade de sensibilidade em datas e contextos específicos.
A polêmica envolvendo Netinho e Vesgo reflete um momento de transição na televisão brasileira. Nos anos 2000, programas como o “Pânico” dominavam a audiência com um humor que, embora popular, frequentemente ignorava as implicações sociais de suas piadas. Com o tempo, a sociedade passou a exigir maior responsabilidade dos meios de comunicação, o que levou a uma reformulação de formatos humorísticos. Hoje, programas de humor tendem a ser mais cautelosos, refletindo uma maior conscientização sobre questões de diversidade e inclusão.
O 20 de novembro é uma data central para a luta antirracista no Brasil. Criado em 1971 pelo grupo Palmares, de Porto Alegre, o feriado ganhou projeção nacional a partir dos anos 2000, sendo oficializado em diversas cidades e estados. Em 2011, a Lei 12.519 instituiu o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, embora não como feriado nacional. A data homenageia Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, símbolo de resistência contra a escravidão.
Anos após o incidente, Netinho e Vesgo se reencontraram em uma nova matéria jornalística. O humorista, segundo o cantor, pediu que ele nunca mais batesse em ninguém, ao que Netinho respondeu: “E você não deve fazer piadas de negro no dia 20 de novembro.” O diálogo, embora tenso, mostrou que ambos mantiveram suas posições. Netinho, em particular, nunca se desculpou formalmente pela agressão, sustentando que sua reação foi uma defesa de princípios.
O episódio também gerou reflexões sobre a evolução do humor na mídia. Programas como o “Pânico” abriram caminho para formatos mais livres, mas também expuseram os riscos de um humor sem filtros. A crítica de Netinho ao modelo “importado” e desrespeitoso ecoa em debates atuais sobre a responsabilidade dos criadores de conteúdo. Em um país com profundas desigualdades raciais, o humor que ignora contextos históricos e culturais tende a perder espaço.
A trajetória de Netinho de Paula, desde os palcos do pagode até a fundação da TV da Gente, é um exemplo de como a arte e o ativismo podem se entrelaçar. O soco em Vesgo, embora um momento de controvérsia, foi para o cantor uma afirmação de sua identidade e compromisso com a luta antirracista. O Dia da Consciência Negra, que motivou o conflito, segue como um lembrete da importância de respeitar a história e a cultura afro-brasileira.
A carreira de Netinho de Paula é um reflexo das conquistas e desafios enfrentados por artistas negros no Brasil. Sua passagem pelo Negritude Júnior marcou o pagode com mensagens de empoderamento, enquanto sua incursão na televisão ampliou o alcance dessas ideias. A TV da Gente, embora não tenha alcançado o sucesso comercial esperado, deixou um legado de ousadia ao propor uma mídia mais inclusiva.
O incidente com Vesgo, embora polêmico, trouxe à tona discussões importantes sobre os limites do humor e a necessidade de respeito às datas e símbolos culturais. Netinho, ao relembrar o caso, reforçou que sua reação foi motivada por um compromisso com a causa racial, uma postura que ele mantém até hoje. “Tem coisas que comigo não dão certo: racismo”, disse em 2014, uma frase que resume sua trajetória.
A evolução da mídia brasileira desde os anos 2000 mostra que o debate levantado por Netinho ganhou força. Hoje, a representatividade negra na televisão e no streaming é maior, com produções que valorizam narrativas diversas. Ainda assim, o caminho é longo. O 20 de novembro segue como um momento de reflexão, não apenas sobre o passado, mas sobre o futuro de um Brasil mais justo e igualitário.