“Globo Rural continua sendo uma revista necessária e oportuna.” Palavras de um de seus criadores e seu primeiro diretor, Humberto Pereira. O jornalista, que trabalhou por 41 anos no Grupo Globo, tem seu nome vinculado ao programa Globo Rural, que completa 45 anos em 2025, e à revista, a mais nova “quarentona” da empresa, que acaba de completar 100 anos.
Pereira abriu as portas de sua casa, em São Paulo, para a reportagem e contou como a ideia de criar a revista como complemento do programa de televisão surgiu não em salas de reuniões, mas em conversas de bar. E, em um mundo de tantas mudanças, na tecnologia, na sociedade e na própria imprensa, ele não hesita em dizer: “O brasileiro ama o Globo Rural e a Globo Rural”.
Leia também
Globo Rural organiza segunda edição do ‘Agro Horizonte’
Café: sempre protagonista na Globo Rural
Globo Rural: Como você chegou ao Globo Rural?
Humberto Pereira: Na redação da Globo, em São Paulo, eu fazia Jornal Hoje, Jornal Nacional. E trabalhava com a editora Rio Gráfica em um projeto de teleducação. Quiseram me propor exclusividade nesse projeto. Fui até o diretor da Rede Globo São Paulo, Luiz Fernando Mercadante, e falei que ia trabalhar só com o Telecurso. “De maneira nenhuma. Eu tenho três coisas para te oferecer, você não vai sair daqui.” Eu disse: “Então, me fala só o terceiro, porque os outros dois eu já sei’”. “O terceiro é um programa rural, em rede para o Brasil inteiro.” Eu disse ‘Me dá’.
GR: De pronto, assim, na hora?
Pereira: De pronto. Era o primeiro programa em rede que não iria ser comandado do Rio de Janeiro. Então, a autonomia de quem fosse fazer o Globo Rural em São Paulo era do Brasil inteiro. E a temática me seduzia muito. Porque era uma coisa pioneira. O comercial da Globo fez uma pesquisa de viabilidade, constatou que tinha um grande desenvolvimento de energia elétrica e sinal de televisão para o campo. E que não tinha nenhum produto da Globo voltado para aquele público. O sucesso foi enorme. O programa Globo Rural foi uma explosão, a descoberta de um mundo bonito, mas laborioso. Um programa de uma força de trabalho: a produção de alimentos, fibras, energia.
GR: E tratar disso de um modo jornalístico.
Pereira: O que o Globo Rural não poderia ser? Vale também para a revista. Um telecurso. Tinha que ter todos os fundamentos do jornalismo baseando qualquer coisa. E a gente tem que fazer um programa bonito. A televisão tem que ser bonita também. “Qual é o público-alvo de vocês?’” me perguntaram inúmeras vezes. Eu falava: “Não é apenas o agricultor. É o público que tem televisão em casa”. E foi o que aconteceu. A audiência do programa extrapolou o mundo rural, foi para a cidade. A cidade tem a ver com o campo. O que não havia era uma consciência dessa ligação, que a gente procurou salientar.
GR: Essa consciência está maior hoje?
Pereira: Eu acho que houve um progresso enorme. A comunicação chegou ao campo e está vindo do campo para a cidade, pela internet. E, nesses 40, 45 anos, o desenvolvimento econômico e financeiro do campo foi extraordinário. Esse progresso acabou com uma imagem preconceituosa do homem do campo. É outra realidade.
GR: E como surgiu a ideia da revista, cinco anos depois do programa?
Pereira: A Globo foi procurada por duas empresas, com propostas de fazer a revista. Não conheciam o ramo, e a coisa esfriou. Em 1985, o João Noro, que era funcionário da Rio Gráfica, nos procurou, mas trouxe um projeto similar aos outros. Eu disse: ‘Não é nada disso. Quero dizer a você que agora fomos procurados por uma pessoa que faz parte do Grupo Globo. Você tem tudo que precisar. Agora, é o dr. Roberto que tem que fazer essa revista.” Ignoramos aquilo. “Vamos conversar depois do expediente. A gente vai para o bar, aí vamos conversar.”
Eu e o João Noro fomos várias vezes. Era filé-mignon picadinho e a gente imaginando a revista, e eu falando como era o mundo rural, as reportagens. Ele incluiu o Mario Rubial, e eu, o Zé Hamilton Ribeiro. Então, começou em uma mesa deliciosa de bar, e a ideia foi crescendo. E o que tinha nesse projeto? Primeiro, herdava, do ponto de vista de conteúdo, tudo que a gente já tinha assimilado do programa da televisão. Segundo, tinha que estar intimamente ligado ao programa.
Aí, teve uma carta muito importante. O Globo Rural recebia 200, 300 cartas por dia. Teve uma que o telespectador dizia: “Eu vejo toda semana o programa, mas é tudo muito ligeiro. Precisamos de alguma coisa que possa pegar. Dá para imprimir?”. Fizemos uma revista para ser complementar ao programa, e vice-versa. Teve uma decisão também muito importante, que é a parte comercial.
Humberto Pereira: “a cidade tem a ver com o campo. O que não havia era uma consciência dessa ligação, que a gente procurou salientar”
Thiago de Jesus
GR: Em algum momento teve que se tratar do aspecto empresarial desse projeto.
Pereira: Foi tratado conjuntamente. “Vai vender na banca, mas vai ter que ter assinatura também.” Eu disse: “Tenho uma ideia mais concreta: vamos fazer mala-direta. O Globo Rural guardou todas as cartas que recebeu até hoje. Cinco anos. As instituições para onde a gente remeteu o nosso telespectador e responderam, tem assuntos que renderam 100.000 cartas”. Nós juntamos mais de 1 milhão de endereços de agricultores. E ficaram mandando uma chamada de assinatura. No primeiro ano da revista, o que ela recebeu em pedido de assinatura para o Brasil inteiro fez com que a tiragem tivesse um crescimento vertiginoso. No final do primeiro ano, era a terceira revista mais vendida do Brasil.
“O ser humano é o que há de mais importante em cada fazenda”
GR: A quantos exemplares chegou?
Pereira: Eu falo de 400.000 exemplares por mês. Para você ter uma ideia, o que a revista Globo Rural pôs de dinheiro dentro da Rio Gráfica no primeiro ano deu para ela comprar papel na Finlândia para um ano para todas as revistas dela.
GR: Como foi o trabalho para adaptar a linguagem da TV para a revista?
Pereira: A experiência de pessoas que já tinham trabalhado em impresso ajudou. Se você pegar repórteres que trabalharam na televisão e na revista, no meu tempo e depois, Ricardo Kotscho, Zé Hamilton, Carlos Azevedo, Ricardo Gontijo. Todo mundo autor de livro. O texto tem que ser muito bom. Não tem que diminuir nada para falar com o agricultor. Eu propus: “Vamos convidar o Carlos Drummond de Andrade para ser o padrinho do nosso texto. O padrão vai ser o de um dos maiores poetas do Brasil”. E acabou ensejando que a gente colocasse, na última página da revista, todo mês, um grande escritor brasileiro. Dias Gomes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Álvaro Rezende, Raquel de Queiroz, e por aí afora.
GR: Mas a lógica era a mesma do programa. Jornalismo: informação e prestação de serviço.
Pereira: Exatamente a mesma. O forte da revista tem que ser reportagem. O repórter vai para o campo, entra na fazenda, conversa com todo mundo. O ser humano é o que há de mais importante em cada fazenda. E esse ser humano não pode ter hierarquia.Tem que falar com o dono da fazenda, o peão, o retireiro do leite. E, hoje, agronegócio não é só o que está dentro da fazenda. É o que vem de fora, entra na fazenda e o que a fazenda gera.
GR: Você disse “o dr. Roberto tem que fazer a revista”. Como é que foi essa entrada dele?
Pereira: As revistas da Editora Globo não mencionavam no expediente o nome do dr. Roberto. Eu falei que o dr. Roberto tem que assumir que é o editor e convenci que ele tinha que apresentar a revista. O editorial de apresentação dele, assinatura dele, a fotografia dele. Quando saiu, ele ficava “namorando” isso na sala dele, todo mundo que chegava ele mostrava. Então, ficou um expediente de quem assume o que está publicando. Então foi assim que o dr. Roberto entrou aqui.
GR: Você tem o seu próprio arquivo da Globo Rural. Costuma revisitar sempre?
Pereira: Quando eu tenho que ir atrás de algum assunto que eu sei que está em algum lugar, eu vou lá, abro e consulto ou revejo. A gente tem uma memória que fica grudada. Isso é uma obra de vida da gente. Fico muito honrado de estar sendo lembrado agora. E até feliz que eu estou bem, que eu ainda estou bem da cuca.
GR: Que histórias ou casos curiosos você se lembra?
Pereira: A gente tinha reunião de pauta e de avaliação. Tanto na televisão quanto na revista. A reunião de pauta tinha uma dificuldade de peneirar tanta sugestão que aparecia nas cartas e os próprios repórteres quando viajavam. Reuniões riquíssimas, livres, onde se falava de tudo.
Nas reuniões de avaliação, em geral, a gente era impiedoso com o que via na televisão ou fazia na revista. Crítico. E jornalista, você tem que ser crítico. Pode ser um gênio. Se não puser um mecanismo crítico, vai caminhando para a mediocridade. Lá fora, todo mundo pode falar bem. Houve alguns casos, assim, icônicos. A gente mostrou para o Brasil a acerola. E um agrônomo em Pernambuco tinha um viveiro de muda de acerola enorme e propôs mandar as mudas para quem pedisse no Brasil inteiro. Foi um fenômeno lá no departamento dele na universidade.
GR: E como você vê essa Globo Rural de hoje?
Pereira: Continua necessária. Por mais que o agricultor tenha evoluído, ele ainda tem uma realidade muito dispersa. Muita liderança que se confronta, muita liderança espalhada. O meio profissional da agricultura precisa de elementos de aglutinação. E a revista pode fazer esse papel. Eu acho que ela é necessária e oportuna. Quando a gente começou a revista Globo Rural, o agro não era essa coisa que é hoje no Brasil. Não tinha essa importância. Mas houve uma evolução tremenda nesses 40 anos de revista e 45 anos de programa da televisão. Você vai me dizer “ah, mas a edição de papel continua?” Eu vou dizer: é oportuna, amigável, não é ligeira, te dá facilidade de ler a hora que você quiser.
GR: A revista Globo Rural, hoje, como produto de comunicação, é o centro de uma plataforma de cobertura de agropecuária da Editora Globo que integra o Valor Econômico, a rádio CBN, o jornal O Globo…
Pereira: É o espírito do início. Palavra do campo. Não é a palavra da Globo, não é a palavra do jornalista da Globo, do repórter, do editor, é a palavra do campo. É o campo que tem que falar. O campo está acontecendo no Brasil de uma maneira extraordinária. Deixa o campo falar. O campo fica orgulhoso disso.
GR: Como você avalia e resume a relação que a Globo Rural construiu com a agropecuária brasileira?
Pereira: Só tem um jeito de falar: o maior afeto, o maior carinho, o maior apreço, o maior amor. Você fala a palavra Globo Rural e abre qualquer porteira do Brasil. O brasileiro ama o Globo Rural e a Globo Rural.





