A Aldeia Sagrada Yawanawá, localizada no Alto Rio Gregório, município de Tarauacá, foi um terreno fértil para conversas relevantes sobre os povos originários e medicinas tradicionais, com a realização da 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca. De 25 a 30 de janeiro, representantes de povos do Acre, Brasil e do mundo deliberaram sobre os usos, costumes e conhecimentos de diversos povos.
O evento, organizado pela Coopyawa, Instituto Cultural Nixiwaka e o Instituto Yorenka Tasorentsi, instituições indígenas locais, foi criado em 2017 com o objetivo de proporcionar um espaço de governança indígena. Realizado a cada dois anos, tornou-se uma instância fundamental para deliberação de demandas e soluções, mobilizando não apenas lideranças indígenas, mas também instituições nacionais e internacionais, autoridades políticas, pesquisadores e parceiros diversos.
Diálogo e regulamentação
A conferência foi marcada por debates em torno de questões como a regulamentação do uso da ayahuasca fora das comunidades indígenas, seu potencial para o tratamento de dependência química e a proteção do patrimônio genético e cultural dos povos originários. As discussões culminaram na elaboração de uma carta de recomendação, documento que sintetiza os posicionamentos, preocupações e prioridades das comunidades envolvidas.
Uma das propostas centrais do encontro foi a criação de um comitê legal para garantir uma regulamentação adequada ao uso da ayahuasca e outras medicinas tradicionais, evitando sua exploração comercial indevida.
A luta contra a biopirataria
“O debate mais importante sobre ayahuasca não está acontecendo entre paredes de universidades, está acontecendo aqui, ao ar livre, em território acreano”, avaliou o líder Yawanawá e anfitrião da conferência, cacique Biraci Brasil.
As lideranças indígenas observaram que, muitas vezes, por trás de promessas de cura se escondem interesses financeiros e violência, por parte daqueles que buscam comercializar a ayahuasca de forma industrializada, ao pretender reduzir o conhecimento ancestral a pílulas. A tendência é considerada, pelas representações, uma nova forma de colonialismo.
Baseado em estudos apresentados na conferência, o líder Yawanawá denuncia: “Levantamentos apontam que os Estados Unidos são o país que mais consome a ayahuasca, abastecido principalmente por plantações na Costa Rica e no Havaí. E essa produção é uma biopirataria, com formas escusas de produção, sem qualquer consentimento ou cuidado dos povos indígenas”.
Benki Piyãko, líder Ashaninka e fundador do Instituto Yorenka Tasorentsi, participou ativamente da conferência e, durante sua fala, enfatizou que a ayahuasca, expandida pelo mundo, tem gerado impactos positivos e desafios para os povos indígenas.
Um dos principais temas discutidos na conferência foi a crescente inserção da medicina tradicional no meio acadêmico e científico, com pesquisas laboratoriais que extraem substâncias da ayahuasca para estudos farmacêuticos. Benki alertou sobre o risco de apropriação desse conhecimento por laboratórios e indústrias, o que pode resultar na perda de direitos dos povos originários sobre suas próprias medicinas e tradições.
Medicinas tradicionais em foco
A ayahuasca esteve, ao longo dos cinco dias, no centro das discussões. Trata-se de uma bebida psicoativa produzida principalmente a partir da combinação do cipó Banisteriopsis caapi com as folhas do arbusto Psychotria viridis. Também é conhecida como hoasca, daime, yagé, santo daime e vegetal. Além de fazer parte da medicina tradicional dos povos da Amazônia, a ayahuasca também é associada a rituais religiosos e aplicações terapêuticas.
“Ela é enteógena, ou seja, uma substância natural que faz você entrar dentro de você e se realinhar com você e com a sua comunidade, diferente de uma substância alucinógena que te distancia da realidade”, detalha o cacique Biraci Brasil, sobre a bebida.
Além da ayahuasca, aproveitando a pluralidade de seus participantes, o evento também abordou outras formas de medicinas tradicionais, como a jurema sagrada, o peiote, o kambô, o rapé e a sananga, entre outras, destacando seus usos e desafios relacionados à preservação e regulamentação.
Interculturalidade
O encontro contou com a participação de mais de 400 pessoas de diversas localidades do Brasil e do mundo. Um verdadeiro exemplo de interculturalidade, conceito de interação, respeito e compreensão entre diferentes culturas e grupos étnicos. Um dos presentes foi o pajé Joseci Potiguara, que representou os povos nordestinos na companhia de outros indígenas.
Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o povo Potiguara é o maior do Nordeste brasileiro, com cerca de 17 mil pessoas nos municípios paraibanos de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto.
Acompanhando o pajé, Eugênio Potiguara, coordenador regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) da Paraíba, apontou a importância de um espaço como a conferência: “Aqui a palavra que destaco é a de interculturalidade. Temos uma oportunidade única de construir diálogos na nossa própria língua e conhecer outras formas de espiritualidade. Só vivendo para saber o tamanho da troca entre diversos povos em momentos como esse”.
Outros universos, dificuldades similares
A comunidade internacional também marcou presença no encontro, com a participação de representantes de mais oito países, como Colômbia, Peru, Guatemala, México, Estados Unidos, Egito e Indonésia. O nativo americano Sandor Iron Rope, do povo Lakota, reconheceu similaridades entre os desafios enfrentados em sua nação e o Brasil, com medicinas originárias diferentes.
Sandor é membro da Igreja Nativa Americana, que utiliza o psicoativo peiote e reivindica respeito e preservação de sua medicina ancestral, tendo em vista que muitas pessoas querem usá-la sem compreender sua importância cultural e espiritual. Ele conta que o peiote é protegido por políticas federais e estaduais que reservam seu uso pelos povos indígenas, mas há constante luta para garantir seu uso devido.
O peiote, ou Lophophora williamsii, é um pequeno cacto nativo do México e do sul dos Estados Unidos, conhecido por suas propriedades psicoativas devido à presença da mescalina, um alcalóide alucinógeno. Utilizado há séculos por povos indígenas em rituais religiosos e medicinais, o peiote pode induzir estados alterados de consciência, visões e introspecção espiritual. Seu consumo é tradicionalmente associado a práticas xamânicas, sendo considerado sagrado por algumas culturas.
“A integridade e o respeito são fundamentais, pois é isso que a medicina nos ensina: disciplina para a mente, o corpo e nossa relação com a Terra. Precisamos garantir que os que trabalham com a ayahuasca e demais medicinas tradicionais o façam com respeito e dentro dos princípios dos povos originários”, complementa.
Representando o Fundo de Conservação da Medicina Indígena (IMC), Sandor destaca sua missão de proteger as medicinas tradicionais, garantindo que o seu uso seja alinhado com os ensinamentos ancestrais. Em sua visão, considera fundamental a construção de um conselho indígena global para unir as vozes para proteger as medicinas tradicionais e fortalecer cada vez mais a conexão de todos com a natureza.
Governo do Acre na conferência
O governo do Acre marcou presença na conferência, ressaltando o seu compromisso com as lideranças indígenas e fortalecendo sua mobilização por direitos. Por meio da atuação da Secretaria Extraordinária de Povos Indígenas (Sepi), foi fornecido apoio, estrutura, garantia de suporte logístico e participação ativa das discussões e mediações do evento.
A presença do governador Gladson Cameli no evento fortaleceu ainda mais a relevância da conferência, evidenciando a necessidade de um apoio oficial do Estado para a proteção desses conhecimentos. O chefe de Estado esteve acompanhado do secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, para ouvir as reivindicações levantadas por uma carta de recomendação construída com base nas discussões levantadas.
A diretora de Povos Indígenas da Sepi, Nedina Yawanawá, participou de todas as atividades propostas e destacou como um diferencial a primeira mesa-redonda realizada, que levantou a importância da atuação das mulheres indígenas, contemplando os seus saberes e as práticas de cuidado.
A partir de sua vivência, apontou: “As mulheres, muitas vezes, não são consideradas quando se trata da prática espiritual, mas, felizmente, isso tem mudado cada vez mais. E tenho orgulho em dizer que essa mudança foi mobilizada pelo meu Povo Yawanawá. Estamos avançando na nossa participação e trazendo melhorias significativas”.
Nedina complementa: “Vemos o fortalecimento da presença feminina, trazendo consigo os jovens e as crianças, ampliando esse espaço de conexão. Nossa participação, que antes era mínima, hoje se consolida como um elo fundamental entre a juventude e os mais velhos, mobilizando nossas comunidades em torno dos ensinamentos ancestrais”.
O líder indígena José Luiz Puyanawa, o Puwe, salienta a força do suporte de instituições parceiras como o governo do Estado: “Com esse apoio, conseguimos fortalecer nossas atividades com mais autonomia, nos reerguendo na linha do turismo e reafirmando nossa soberania. Queremos que o Acre seja visto como um exemplo de força indígena, onde nosso povo possa superar as dificuldades enfrentadas pelos nossos antepassados. Nossa história, cultura e identidade são riquezas que merecem ser preservadas e fortalecidas para as futuras gerações”.
Resistência, regulamentação e proteção dos saberes ancestrais foram temas da 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca appeared first on Noticias do Acre.