quinta-feira, 9 janeiro, 2025
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Sobre o inquérito das FAKE NEWS – A interpretação dos Ministros do STF

 

Neste artigo divergirei da interpretação de
alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal acerca do inquérito das fake news, razão pela qual faço um primeiro
esclarecimento. Tenho grande admiração por todos os Ministros da Suprema Corte
e admiro-os como juristas. Tenho livros escritos com a maioria deles,
participei de bancas de doutorado com alguns e de palestras com quase todos, ao
longo destes sessenta anos de magistério universitário.


Por outro lado, acompanhei os vinte meses de
trabalhos da Constituinte, participei de audiências públicas e mantive contato
permanente com o relator Senador Bernardo Cabral. Desse modo, como velho
professor, entendo que posso divergir, pois convivi com os constituintes
durante todo aquele período. Além disso, analisei a Constituição brasileira com
o professor Celso Bastos, saudoso amigo, em 15 volumes e mais de 10 mil
páginas, ao longo de 10 anos, logo após a promulgação da Carta Magna.


Feitos esses esclarecimentos sobre o respeito
que tenho pelos Ministros, mesmo diante de divergências, passo à segunda
consideração sobre o previsto na Constituição, que vi e discuti com Bernardo
Cabral e com Ulisses Guimarães, o qual chegou a assistir palestra minha sobre o
parlamentarismo, tese que adotou até a Comissão de Sistematização. Roberto
Cardoso Alves, todavia, liderando grupo de parlamentares, derrubou-a no
Plenário.



Há determinadas disposições na Constituição
que, entretanto, refletem a tendência parlamentarista. A primeira delas está na
competência do Congresso Nacional, previsto em primeiro lugar, no mais longo
título da Constituição, que vai dos artigos 44 a 135, ou seja, o da Organização
dos Poderes. Isso porque, como disse recentemente o Ministro Luiz Fux, o
Congresso é o Poder mais importante da República, pois é o único que representa
o povo por inteiro.


De fato, no Congresso há situação e oposição.
Os constituintes, que saíam de um regime de exceção, queriam harmonia e
independência entre os Poderes e, para tanto, descreveram suas competências
exaustivamente, começando com o Poder Legislativo. O Poder Executivo, que
comanda a administração, aparece em segundo lugar, pois representa a maioria da
população e, quando há segundo turno, nem a maioria.


Pelo artigo 1º da Lei Suprema, há uma única
soberania: a do povo. Essa soberania do povo é exercida por representantes por
ele escolhidos, o que não ocorre no Poder Judiciário. Este vem, portanto, em
terceiro lugar para fazer respeitar a lei, que não elabora porque só o
Congresso Nacional pode fazê-lo, bem como o Poder Executivo, com o aval do
Legislativo, por meio das medidas provisórias e das leis delegadas.


Por essa razão, o constituinte prevê no inciso
XI do artigo 49, que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional zelar
pela preservação de sua competência normativa em face da atribuição normativa
de outros Poderes”.


Vale dizer, não pode permitir que outros
Poderes avancem em sua competência normativa. Em face disto, é que entendo que
as duas PECs, em discussão hoje no Congresso Nacional, são de extrema
importância por serem explicitadoras da norma constitucional; não inovadoras.


Pela PEC 28/2023, por exemplo, decisões que
deferirem determinadas medidas cautelares terão que ser referendadas pelo
colegiado. É uma explicitação do artigo 97 da Lei Suprema, segundo o qual a lei
ou ato normativo só pode ser declarado inconstitucional – de rigor, toda a
matéria no STF é sobre constitucionalidade – por maioria absoluta.


A outra explicitação é a da PEC 50/2023,
segundo a qual, sempre que houver invasão, por parte do Judiciário, da
competência legislativa do Congresso Nacional, a este caberá, por dois terços
de seus integrantes, preservar a sua competência exclusiva de legislar,
sustando a eficácia da decisão judicial, conforme já previsto no artigo 49,
inciso XI, mas sem que tivesse o Constituinte definido o procedimento para tal
preservação.


São, portanto, duas PECs explicitadoras de um
poder que o constituinte já tinha dado ao Congresso Nacional desde 5 de outubro
de 1988.


Há mais um aspecto que me parece importante,
antes de entrar no tema das fake news.


O artigo 103, § 2º da Constituição, diz o
seguinte: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar
efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a
adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo,
para fazê-lo em trinta dias.”.

Como se vê, para o Executivo é dado o prazo de
30 dias, mas nenhum prazo é estabelecido para o Congresso Nacional elaborar a
lei nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão.


Neste tocante, lembro-me de, num jantar que
tivemos durante a Constituinte, — Bernardo Cabral, relator da Constituinte, o
ministro Sidney Sanches, que foi meu colega de turma, Odyr Porto, que era o
presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, e eu – em que discutimos
este artigo.


Propus o seguinte: “Sidney, Bernardo, como é
que vocês, diante de decisão do Supremo em ação direta de inconstitucionalidade
por omissão que declara uma omissão inconstitucional, não fixam um prazo para o
Congresso elaborar a lei?” Pretendia colocar um prazo de seis meses.


Sidney Sanches lançou um verdadeiro exocet sobre meu argumento, dizendo o seguinte:
“Ives, como é que nós vamos fazer se, em seis meses, o Congresso não elaborar a
lei? Você acha que teremos condição de mandar prender 503 deputados e 81
senadores, por desacato à ordem judicial?” – À época eram 503 deputados -. O
argumento de Sidney derrubou o meu e Bernardo concordou com ele, permanecendo
sem prazo a redação do artigo 103, §2º.


Fato é que, nem mesmo nas ações diretas por
inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional, pode o Supremo
legislar.


Então, parece-me que, no artigo 1º, a
soberania é do povo e dois Poderes o representam. Há um terceiro Poder que é
guardião da lei, que não elabora; por isso, aparece em último lugar na
organização dos Poderes.


Ora, a Constituição foi elaborada para dar
equilíbrio e harmonia entre os Poderes, em um momento em que saíamos de um
regime em que havia um poder dominante. Os constituintes, durante vinte meses,
buscando não ter um Poder dominante, definiram exaustivamente as competências
de cada um dos Poderes.


Por essa razão, entrando na última parte desse
artigo, entendo que o inquérito das fake news,
que meu querido amigo, Ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello, chama de
inquérito do fim do mundo, não poderia continuar; pois virou um verdadeiro
buraco negro. Tudo quanto é matéria é considerada fake news.


Se verificarmos, a Constituição não permitiria
esse inquérito. Devemos, pois, analisar o artigo 5º, que é o mais importante da
Constituição por definir, claramente, quais são os direitos individuais,
sociais, políticos e de nacionalidade que têm o cidadão brasileiro.


Logo no início dele, nos incisos IV e V,
declara o seguinte: “é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o
anonimato; é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material ou moral à imagem”.


Significa dizer que não é possível
pré-determinar o que o cidadão pode ou não dizer, o que não impede dele ser
punido caso o faça abusivamente. Em outras palavras, o que o constituinte
declarou é que é livre a manifestação de pensamento, mas o abuso, sendo vedado
o anonimato, dá direito à resposta e à indenização por danos morais, sendo
possível, ainda, pelo princípio da recepção do Código Penal, a configuração da
denunciação caluniosa, injúria ou difamação.


Ocorre
que o Supremo está discutindo se o artigo 19 da Lei da Internet (Lei
12.965/2014) – segundo o qual “o provedor de aplicações de internet somente
poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências
para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo
assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente” – 
ficará como está ou se pode dar a ele uma nova redação. Ora, isso é competência
do Legislativo, não do Supremo.
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Em
suma, o Supremo Tribunal Federal está deliberando atualmente sobre a Lei da
Internet, de um lado e, por outro lado, sobre o inquérito das fake news, em tramitação há 5 anos – inquéritos devem
durar 60, 90 dias no máximo -, atraindo muitas coisas que não tem nada a ver
com fake news, virando, assim, um buraco negro judicial
que, como no universo, atrai tudo que está perto.



Ora, de
acordo com a Constituição, o eventual abuso só pode ser punido posteriormente e
a livre expressão de pensamento, que é a característica maior de uma
democracia, está nela preservada. Todo cidadão deve ter a liberdade de dizer o
que pensa e, se abusou, será responsabilizado “a posteriori”, não “a priori”
impedido de dizer aquilo que desejava, posto que a democracia admite sempre um
debate de ideias.


A
questão é preocupante, pois quando ideologias prevalecem- e a ideologia é a
corruptela das ideias -, é evidente que teremos o Poder orientando o pensamento
do cidadão.


De
rigor, resumindo todo o exposto, a Constituição diz que só pode haver um
controle “a posteriori”, e não uma definição “a priori” e, a meu ver, o
inquérito das 
fake news,
independente de outros aspectos jurídicos que, num espaço curto, não se pode
analisar – como a questão do juízo natural, já que estamos diante do exercício
alargado das competências definidas pelos artigos 102 e seguintes da
Constituição, com pessoas que não têm foro privilegiado sendo  julgadas em
primeira instância no Supremo Tribunal Federal – vejo, apesar de toda admiração
por livros escritos, palestras dadas, bancos de doutorado juntos e respeito que
tenho pelos eminentes julgadores, que há uma divergência profunda naquilo que
eu vi durante aqueles 20 meses de  debate entre os constituintes, para que
tivéssemos uma democracia ampla, na qual os Poderes fossem independentes e
harmoniosos, cada um deles trabalhando dentro das competências específicas da
Constituição, sem preocupação de invasão de competências alheias.


O
inquérito das fake news, a meu ver,
representa, enfim, um reescrever da Constituição, com as substituições de juízo
natural, entrada de tudo aquilo que se considera fake news,
e fazendo com que efetivamente o Congresso Nacional vá perdendo importância,
sendo que, conforme dizia o ministro Fux, o Legislativo é o Poder mais
importante da República, pois o único que representa a totalidade da população.


Portanto,
o inquérito das fake news,
malgrado todo respeito e admiração, pois tenho livros escritos, participei de
inúmeras conferências, participei de programas de televisão com o ministro
Alexandre Moraes e escrevi livros com o ministro Toffoli, proferindo palestras
com ele e tendo ele proferido palestra no lançamento de livro que participou em
homenagem aos meus distantes 80 anos, o que me sensibilizou sobremaneira, tenho
que divergir, nesse momento, da permanência desse inquérito e apoiar o que
disse o ministro Marco Aurélio de Mello, entendendo que o inquérito das fake news, em vez de fortalecer a democracia,
enfraquece-a sobremaneira, e o que é mais triste, vai limitando o que é
extremamente importante numa democracia, que é a liberdade de expressão.

 

Ives Gandra da Silva Martins é
professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O
Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme),
Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª
Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin
de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das
Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da
Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da
Fecomercio -SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do
Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).


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