Nas fileiras da frente, familiares das vítimas da Chacina de Acari lembravam dos 34 anos de luta por justiça. Atrás deles, cadeiras vazias do que já foi o plenário do Superior Tribunal Federal (STF), quando o Rio de Janeiro era capital do país. Uma imagem simbólica da ausência de décadas das instituições brasileiras na garantia dos direitos das vítimas.
Uma delas, Edméia da Silva e a sobrinha Sheila da Conceição, foram assassinadas depois que a primeira denunciou o envolvimento de policiais militares no crime.
Na noite dessa terça-feira (17), foi feita uma leitura pública da sentença no local onde hoje funciona o Centro Cultural da Justiça, no centro da cidade.
“Recebi com a maior satisfação a decisão, mas demorou muito. São 34 anos. Fiquei sem mãe, sem irmão e sem cunhada. E para a gente ganhar, teve que ir lá na Corte, porque o Estado brasileiro não fez nada. Sempre falou que já tinha arquivado, que não tinha corpo, nem vítima, e que a gente não teria direito a nada. Foi uma falta de respeito muito grande com os familiares”, disse Rosângela da Silva, filha de Edméia e irmã de Luís Henrique, ambos assassinados.
“Um alívio. Meu filho era maravilhoso. Foi fazer um passeio em Magé, aconteceu de chegarem lá e levarem todo mundo, dizendo que eram da polícia. E nunca mais ninguém apareceu, vivo ou morto. Levei décadas na esperança que ele voltasse e nunca voltou. E o Estado não fez nada para a gente, não nos ajudou. E o tempo foi passando. E a gente finalmente conseguiu”, falou Ana Maria da Silva de Jesus Braga, mãe de Antônio Carlos da Silva, uma das vítimas.
O irmão de Vanine de Sousa Nascimento, Wallace de Sousa Nascimento, tinha 17 anos quando desapareceu. O sítio em Magé, na Baixada Fluminense, onde ele e as outras 10 pessoas foram vistas pela última vez, pertence à família de Vanine. Apesar do trauma, ela manteve o local intacto, na esperança de que pudesse ajudar nas investigações.
“Manter o local ao longo de todos esses anos não foi fácil. Porque a cada momento que nós pisávamos lá, tínhamos que reviver tudo o que aconteceu. Para a gente, sempre foi um peso muito grande. Mantivemos o local até mesmo pensando nas buscas, investigações, à disposição da Justiça”, conta Vanine.
A sentença da CIDH marca uma nova fase na vida da família.
“É como um divisor de águas. Como se tivéssemos adormecidos durante 34 anos e agora despertamos para viver uma nova história. Ver os nossos falecerem e não verem o desfecho foi muito difícil. Vermos os nossos filhos e netos nascerem sem saber o que aconteceu foi muito difícil. Resgatar a nossa história dessa forma, com essa decisão da Corte, nos deixou muito felizes”, diz Vanine.
A CIDH determinou que o Estado brasileiro siga um conjunto de reparações em relação ao caso. Entre as medidas, estão investigar o desaparecimento forçado das 11 pessoas, buscar os paradeiros, realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade, emitir certidão de óbitos, criar um espaço de memória na região e oferecer apoio médico e psicológico aos familiares das vítimas.
Há também a exigência de reparações financeiras, com pagamento de indenizações por danos materiais e imateriais, tipificação do desaparecimento forçado no ordenamento jurídico brasileiro, e elaboração de estudo sobre a atuação de milícias e grupos de extermínio no Rio de Janeiro.
Segundo o advogado Carlos Nicodemos, que atua no Projeto Legal das Vítimas da Chacina de Acari e responde pela defesa delas, está marcada para esta semana uma reunião com os ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania e o da Igualdade Racial para planejar um cronograma de cumprimento da decisão. O primeiro item das obrigações foi cumprido nessa terça-feira, com a publicação da sentença em um jornal de grande circulação.
“A sentença do caso Mães de Acari, além de descortinar a questão da violência estrutural contra crianças, mulheres, pessoas pretas, que moram em favelas e comunidades, e o problema da segurança pública, abre uma janela de oportunidades para o Estado brasileiro operar uma série de ações de não repetição desse tipo de crime”, disse o advogado.
“Temos um abismo normativo no Brasil em relação aos desaparecimentos forçados, pela ausência de uma tipificação do crime. Existe um projeto de lei desde 2011 que não avança. O Estado brasileiro precisa reconhecer o tratado internacional desse tema, que aponta para um mecanismo de monitoramento e controle”.
Para Lúcia Xavier, fundadora da ONG Criola, a expectativa é que sentença da Corte Interamericana ajude a embasar outras ações e decisões judiciais em favor das vítimas de desaparecimentos forçados no país.
“Para nós, que atuamos no campo dos direitos humanos, sobretudo no enfrentamento ao racismo e à violência contra jovens, é uma possibilidade muito grande de ter políticas de desaparecimento, de investigação e mais articulação entre os serviços públicos em favor dessas pessoas”, disse Lúcia.
“O que a gente espera é que essa sentença seja basilar como foi a da Maria da Penha, em relação à violência contra as mulheres, e que se construa todo um arcabouço de atuação do Estado brasileiro em defesa dessa população”.