Walter Salles faz de “Ainda Estou Aqui” um filme 100% universal

Foto © Alile Dara Onawale

Por Hermes Leal

“Ainda Estou Aqui” é um filme bem brasileiro, mas que pode ser entendido por plateias do mundo inteiro. É um filme sobre uma família, sobre o drama de uma mãe que, ao perder o marido, precisa superar o luto com o medo dela própria e os filhos morrerem também.

O longa narra a saga e expurgação desse luto de uma mãe que abre mão de alguma vida própria, de um sentimento em si, se dedicando às causas dos outros, como a defesa dos índios da Amazônia. Uma heroína perfeita e que deu ao filme o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza deste ano.

Essa seria a sinopse de muitos filmes americanos, europeus, argentinos, mas é brasileiro, em que o tema se sobrepõe sobre o drama interno dos personagens. Nesse caso, o tema da injustiça, matriz estrutural de nossas telenovelas, prevalece sobre o drama. O tema no cinema brasileiro tem se sobreposto ao drama em qualquer ficção, mas ainda bem que temos bons cineastas, com verve de explorar a estética do sensível no cinema, como Walter Salles, para fazer essa diferença soprar a nosso favor.

No Brasil, o valor do tema é imenso, e no filme está na perseguição, opressão, tortura e morte nos porões da ditadura militar, que motivam os percalços de uma heroína lutando contra esse sistema. Mas a riqueza artística do filme de Walter Salles está na maestria de buscar o sentimento humano universal no tema, sem abrir mão do valor que tem. Para ser cinema brasileiro precisa, antes de tudo, ser temático. E para ser arte é preciso não ser compreensível pelo espectador. Walter Salles quebra esses paradigmas tupiniquins.

Seu filme “Ainda Estou Aqui” busca emocionar o espectador, escondendo o mais que pode o tema da ditadura, deixando apenas sua sombra e consequências nefastas. Só mestres da arte do cinema conseguem esses feitos imanentes se tornarem transcendentes. Cuarón fez assim em “Roma”, em que o tema político é inserido como um “som ao redor”, para reforçar o conflito sensível e interno dos personagens. Walter Salles mostra com sua arte como o sensível rege o inteligível.

O cinema de Walter Salles sempre foi um cinema de personagem. Suas grandes obras são aquelas em que acertou a mão na densidade do personagem, como no caso de Dora, de “Central do Brasil”, em que o tema “brasileiro” ficou totalmente em último plano, prevalecendo na sensibilização do espectador a força da ruindade, clássica de personagens afetados pela paixão da melancolia. A contrário da personagem Eunice Paiva, que se dedica ao outro, Dora não sente o sofrimento dos outros, mas tem a culpa dos melancólicos, que tenta liquidar se livrando do garoto. E isso é universal.

Grandes cineastas e grandes escritores são exploradores de almas. “Central do Brasil” foi um filme que mais se alinhou ao cinema de arte exatamente por tratar o sofrimento da personagem “em si”, que é a principal característica de personagens de Fellini, Godard, Proust, Camus, enfim, de grandes obras. Mas, em “Ainda Estou Aqui”, o cineasta Walter Salles faz o contrário, constrói uma personagem sem esse sentimento de si em primeiro plano, e consegue, mesmo assim, ao seu modo, sensibilizar o espectador com o sofrimento de sua personagem.

Filmes assim reforçam um bom caminho para o cinema brasileiro. Que precisa de personagens verdadeiros, fora da linha da “cura”, de colocar uma “concessão” em todas as implicações, e gritos onde deveriam haver um real sentimento. O que tornaria o cinema 100% brasileiro universal, como faz Walter Salles e Kleber Mendonça Filho, seria explorar os personagens com esses sentimentos universais, sem abrir mão de sua temática. O cineasta chinês Jia Zhang-Ke tem conseguido fazer seus filmes fora da curva do drama sentimental, e pela força da arte, como a dos grandes mestres, ser um cinema 100% chinês, reconhecido no mundo todo.

 

Hermes Leal é jornalista, escritor, roteirista e documentarista. Mestre em Cinema, com especialização em roteiro, pela ECA/USP, e doutor em Linguística e Semiótica, pela FFLCH/USP, com a tese “As Paixões na Narrativa” (2017), na Coleção Estudos da Editora Perspectiva, é criador da plataforma de ensino Screenwriter Online e presidente da Associação dos Críticos de Cinema do Tocantins (ACCTO).