“Corisco & Dadá”: no coração do cangaço, o épico e o pessoal

Por André Guerra

Os galhos secos da mata branca devoram a jovem Dadá, levada de seus pais ainda tão criança, mas ela mantém sua dignidade e firmeza no olhar mesmo quando a dor insuportável da perda de um filho transborda em sua feição. E não terá sido o primeiro. Arranhões em suas bochechas são há muito tempo indivisíveis de sua nova vida, descrita por ela a Maria Bonita como vida de “bicho bruto”: escondendo-se entre guerras e sem chance de gastar as riquezas conquistadas pelo bando. A esperança de chegar à terra farta de água e comida move seu longo caminhar pelo Sertão ao lado do “Diabo Loiro” – como também é chamado Corisco, ou Cristiano Gomes da Silva Cleto –, mas o céu e a areia fina a comprimem e estreitam seus horizontes.

Eis o encontro glorioso de Dira Paes com uma personagem que lhe renderia o troféu de melhor atriz no Festival de Brasília e cuja força se revela o coração de um clássico brasileiro, Corisco & Dadá. Com a testa permanentemente franzida pelo sol e pela fome, Sérgia Ribeiro da Silva é, mesmo que no meio do sofrimento, uma presença luminosa. A câmera que passeia pelo reflexo da menina no rio revela em seguida a personagem já crescida, ainda que na tenra idade, segundos depois de ser observada à distância pelo seu sequestrador com um olhar contemplativo que emerge da rudeza. Chico Díaz, que veste Corisco em seu corpo e em sua voz como uma segunda pele e que com este papel venceu o Kikito de melhor ator no Festival de Gramado, revela nesta passagem de tempo a capacidade de incorporar um personagem tão marcante na iconografia do cangaço como quem o entende tanto quanto a si próprio.

É a partir da impossibilidade de separar a delicadeza da brutalidade que Rosemberg Cariry, então apenas em seu segundo longa-metragem de ficção, três anos após A Saga do Guerreiro Alumioso, registra a jornada simultaneamente épica e íntima desse casal, na qual primeiríssimos planos se contrapõem à vastidão da caatinga, em sua fauna e flora hostis (não raro sombrias) quanto encantatórias. Não se trata de romantizar ou relativizar a violência dos homens através da poética das imagens – que, agora restauradas em 4K, cristalizam a memória preservando a textura única do período –, mas de reconhecer as contradições e complexidades dos personagens reais transcritos para a tela grande em um diálogo indissociável com os gêneros cinematográficos clássicos (nenhuma base melhor para ressignificar e adaptar os códigos faroeste ao cenário brasileiro do que o universo do cangaço).

Cruel e impiedoso, cheio de emoções ardentes quanto as rochas de granito sob seus pés, Corisco é uma tragédia desenhada pela natureza de suas ações e um soldado preso até a raiz às diretrizes de Lampião. O filme não contorna essa matriz extrema de sua personalidade e até maximiza a violência: o sangue humano e o sangue animal espirram na pele dos personagens e pintam os objetos por onde passam; as cabeças são cortadas sem suspense ou cerimônia e o horror das reações é tão autêntico quanto a fúria dos cangaceiros. Essa dicotomia entre a indignação com a barbaridade refletida nos olhos de Dadá e dos civis e a adrenalina cinematográfica em ver o anti-herói em ação é intensificada pela presença radicalmente vilanesca e despersonalizada da polícia (os “macacos”). O ódio nutrido pelo Zé Rufino vivido por Antônio Leite é verbalizado a cada instante, como um mal dos homens que não encontra alento nas ponderações das leis, na racionalidade pelo dinheiro nem mesmo pela misericórdia. Ao ouvir de um companheiro policial o interesse pelo ouro de Corisco, o chefe retoma seu desejo de arrancar a cabeça do adversário custe o que custar.

É um mundo, por conseguinte, de cruzadas masculinas, de selvageria bestial retroativa e com respiros que são apenas pausas que precedem rebordosas. Dadá, assim, se transforma não apenas no coração, mas também no oásis do percurso sem fim. É revelador como algumas das cenas em que é sentida uma possibilidade mínima de redenção para os protagonistas são rodeadas de maior presença de verde da vegetação, ao passo que os momentos mais crepusculares são também rodeados da seca absoluta, como o assassinato sangrento de Domingos, na Fazenda Patos, filmado sob a luz difusa do pôr do sol. O apelo de Dadá na proteção de duas crianças da chacina promovida por Corisco é, nesse trecho citado, o ápice de tal drama, no qual a figura feminina é um tótem do equilíbrio, da ânsia pelo fim do inferno das carnes expostas. “O ódio te enfeitiçou”, diz ela girando em volta do marido, que parece possuído, como em um cabo de guerra entre a razão e a piedade (Dadá) e a reafirmação da mística daquela figura (Corisco).

Na encenação e na intensidade, Rosemberg Cariry remonta, a seu modo, a forma como Glauber Rocha trabalhou essa iconografia sertaneja, sobretudo nos clássicos Deus e o Diabo na Terra do Sol, que acaba de completar 60 anos, e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Em um contexto marcado pela Retomada, no qual o cinema brasileiro renasceu com um vigor ainda maior de repercussão internacional, público e sofisticação da linguagem, Corisco & Dadá é singular na sua balança entre a crueza, as influências teatrais e a expressividade ocasionalmente experimental do Cinema Novo e o formalismo, a estetização e a organização espacial identificada nos principais longas nacionais da segunda metade da década de 1990.

É perceptível essa dupla potência da obra, sobretudo nas cenas de ação. Em dado momento, antes de perder seu primeiro filho, Dadá tem uma de suas visões que permeiam o filme e grita por Corisco; a organização dos planos segue um rigor de causa e consequência que antecipa a batalha que está por vir, mas, quando o tiroteio começa, as armas se misturam na montagem, assim como os cactos baleados da paisagem, e a violência parece vir de todos os lados, sem que seja possível distinguir membros do bando dos “macacos” invasores. No correr de Dadá com o bebê no seu braço, tentando escapar da troca de tiros, a câmera finalmente se torna viva – remetendo novamente ao cinema de Glauber – e mergulha na aridez como se também participasse da guerra. Um balançar de planos que rima até com a dança característica do protagonista, antes de profanar sua ira.

Tão completa é a maneira como Rosemberg Cariry maneja esses dois apelos – o épico/místico e o intimamente pessoal – que, ao observar essa relação de sentimentos opostos contida no trabalho de Chico Díaz e Dira Paes, nota-se como elas refletem precisamente essa divisão que o filme propõe: enquanto ele é um símbolo do próprio mito, da sensação insaciável de grandeza em pertencer (e liderar) este grupo de homens e fazer valer suas vontades e credos, ela representa o rastro perdido de expectativas que cria cascas para sobreviver na hostilidade, mas nem por isso deixa de sustentar a aspiração pela paz.

O épico e o íntimo estão na forma, no texto e nos rostos que dão vida a Corisco & Dadá, que está renascendo com impacto redobrado com a transparência devida e, principalmente, agora que todos esses signos do cinema nordestino estão sendo redescobertos e repensados não apenas enquanto expressão cultural de um povo, mas da resistência de parte de um país que tanto se transformou desde 1996. E, felizmente, segue em transformação para que a esperança de Dadá não tenha sido vã.

 

André Guerra é crítico de cinema filiado à Abraccine, formado em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e mestrando do Programa de Pós-Graduação da UFPE, com pesquisa focada em horror. Escreve no Diário de Pernambuco, mantém no YouTube o canal de crítica Sessão Restrita e colabora com o site Estação Nerd. Realizou oficina de crítica em três edições do Festival Cine Jardim, do qual integrou por duas vezes o júri. Comenta o Oscar no R7 desde 2022 e realiza cobertura de festivais de cinema, como Cine PE, Gramado, Cine Ceará, Mostra de Tiradentes, Mostra de São Paulo e Olhar de Cinema.