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O balanço de uma vida, a de Antonio Candido, soma memória e dor

Revista e Cinema

Foto: Antonio Candido © Ana Luisa Escorel

Por Maria do Rosário Caetano

“Antonio Candido, Anotações Finais”, o novo longa documental de Eduardo Escorel, chega às salas de cinema nessa quinta-feira, 26 de setembro. Narrado por Matheus Nachtergaele, que dá voz aos cadernos de memória do sociólogo e crítico literário carioca-mineiro-paulistano, o filme será tema de três encontros com intelectuais e artistas.

Num deles, o segundo, destaca-se a presença de um pensador da grandeza de Roberto Schwarz, brasileiro nascido em Viena, Áustria, há 86 anos. O encontro se dará no IMS (Instituto Moreira Salles), na Avenida Paulista, nessa sexta-feira, 27, às 18h30. O mais brilhante dos discípulos de Candido, Roberto Schwarz, também sociólogo e crítico literário, é grande estudioso da obra de Machado de Assis, do escritor Chico Buarque, do Brasil, enfim.

Quem comparecer à sede do IMS paulistano, desfrutará, além da presença do autor de “Um Mestre na Periferia do Capitalismo”, da participação da cineasta Lina Chamie (“Tônica Dominante”) e do próprio Eduardo Escorel.

O diretor do filme soma à condição de discípulo (um “aplicador” das férteis ideias de Antonio Candido no audiovisual), a circunstância de ser genro de seu “personagem”. Portanto, um conhecedor em profundidade da contribuição do mestre uspiano aos estudos sobre a complexa realidade brasileira. Escorel, nunca é demais lembrar, desfruta, aos 79 anos, de espaço nobre entre os grandes nomes do cinema brasileiro. Ele teve a fortuna de montar três filmes-esteios de nossa história cinematográfica (“Terra em Transe”/1967, “Macunaíma”/69 e “Cabra Marcado para Morrer”/84).

No dia exato da estreia de “Antonio Candido, Anotações Finais” (essa quinta-feira, às 19h), o cineasta estará no IMS de Poços de Caldas, cidade mineira onde Candido viveu de 1930 a 1942, para conversar sobre o filme com Maria José de Souza, a Tita, e com o público. Mais um encontro está agendado para Belo Horizonte (na semana seguinte, quarta-feira, 2 de outubro, às 20h, no Minas Tênis Clube).

Escorel constrói seu filme com a segurança de um mestre. De forma cirúrgica, escolhe apenas dois dos 74 cadernos de anotações que Candido deixou inéditos. Opta pelos dois últimos. Cabe à voz clara e afetiva de Matheus Nachtergaele modular os comentários, todos instigantes (mesmo quando melancólicos), registrados nos longos dias e meses de 2015 a 2017, enquanto o país pegava fogo.

O sociólogo cola notícias de jornais aos seus cadernos, evoca sua fragilidade física, sem perder a sintonia com a crise política que acontece lá fora. Falará de figuras como a do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, “diabólico” comandante-em-chefe do impeachment de Dilma Roussef, de Lula, de Fidel Castro, entre outros.

Evocará, também, a catástrofe ecológica de Mariana, promovida pela Vale (do Rio Doce), e, de forma recorrente, sobre o que considera, pleno de razão, o maior desafio brasileiro – resgatar dívida histórica com nossa população negra. “Depois da abolição, o que se fez foi descartá-lo (ao afro-brasileiro), não ajustá-lo” (ao corpo social dessa nação marcada pela incompletude).

Candido dialogará com textos de jornais, citará artigo de Bernardo Mello Franco, que o encantou. Outro de Marcelo Freixo, articulista por ele desconhecido, mas cujo artigo sobre “parlamentarismo de extorsão” lhe parecera muito lúcido. Pedirá emprestrado a Mário de Andrade dolorosa evocação do Brasil visto como uma “Pátria despatriada”.

Como não poderia deixar de ser, Candido – lembremos que Matheus Nachtergaele dá voz a um defunto-autor machadiano – faz com muita angústia e certa pressa suas anotações para a posteridade, pois sente que suas forças físicas estão se exaurindo. Suas caminhadas são cada vez mais reduzidas, pois as pernas já não aguentam mais.

Candido falará muito de literatura, afinal, uma das razões de sua vida e importantes estudos. Citará seus romances preferidos – “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, “No Caminho de Swann”, de Proust, “Le Père Goriot”, de Balzac, “Os Demônios”, de Dostoievski, e o cataclisma “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.

Como se vê, Machado de Assis ficou de fora. E por que? O professor uspiano, ele mesmo, explicará a razão. Citava os livros que lhe haviam causado verdadeiro abalo, arrepio, taquicardia. Machado, grande escritor, não provocava sensações físicas tão avassaladoras, tão corpóreas, no discreto Candido.

Além dos gostos literários, o sociólogo evocará lembranças musicais e até cinematográficas. Das primeiras, a mais inusitada (e encantadora) virá da América Hispânica (do México?). Por alguma razão, ao falar da banalização do homicídio no mundo (e no Brasil) contemporâneo, ele lembrará a presença da morte na vida do país latino. Nesse momento, Escorel recorrerá a bela e significativa gravura de José Guadalupe Posadas (1852-1913) para enriquecer seu rico mosaico de imagens. Mosaico que soma fotografias fixas e trechos de vídeo ou filmes (com Candido ou citados por ele, caso de ficção protagonizada por Rodolpho Valentino, levada a ele por Amir Labaki).

Quem sabe, na convivência com o sogro, Escorel ouviu os trágicos (embora hilários) versos de canção burlesca intitulada “Mata, que Dios Perdona”, de Jorge Luis Cabrera, gravada pelo trio cubano Matamoros: “No le temas el camino, tú camina francamente,/No te importe que la gente, hable de tí primero/ Si no estás de chambelona, y te toca al fin tirar/ Debes seguro matar, que luego Dios te perdona/ Mata, que Dios perdona, mata, que Dios perdona/ Um día me fui a pescar, se me prendió una salmona/ Ella me dijo al saltar: mata que Dios perdona (…)/ Tambiém fui de cacería, y al tirarle a una leona/ Me dijo com sangre fría, mata que Dios perdona (…)/ En la Punta de Cabrera, pescaron la tiburona/ Y dijo mi tintorera: Mata, que Dios te perdona (…)” .

Muitas das lembranças de Candido irão para os familiares (pais, irmãos, tios) e amigos mais próximos. E para Gilda, a companheira de toda uma vida, professora da USP como ele, que morrera aos 86 anos. Se estivesse ali, ao lado dele, ela faria 97. Filho e neto de médicos, Candido lamenta não ter feito o possível e o impossível para que ela sobrevivesse a ele. Ela e tantos que partiram antes dele, vivo e lúcido, um ano antes de seu centenário.

A iminência do fim não impede o sociólogo de continuar pensando o Brasil. Tanto que repetirá postulado que o pautou pela vida inteira e cidadã: “A tônica do Socialismo é a luta pela igualdade, não pela liberdade”. Afinal, tem consciência de seus privilégios: sendo um brasileiro bem situado na escala social, desfruta de recursos materiais e da “liberdade proporcionada a 30% da população”. Os outros 70% não têm moradia digna, acesso a bons hospitais, emprego ou salários decentes, segurança pública ou alimentação adequada.

Embora afastado do PT, pelo avançar dos anos, Candido dá destaque a artigo de Lula (“Porque querem me condenar”), então sob fogo cerrado dos três poderes, em especial do Judiciário lavajatista (ficaria preso por mais de 500 dias). Para, em seguida, citar a morte de Fidel Castro (novembro de 2016) e uma das frases mais famosas do cubano: “Esta noite, no mundo, 200 mil crianças estarão dormindo nas ruas; nenhuma delas é cubana”.

Em nova evocação, citará texto que o mobilizava – “Um Inimigo do Povo” (Ibsen, 1882). A peça do dramaturgo norueguês tinha tudo para sensibilizar o crítico literário, filho e neto de médico. Seu protagonista é um profissional da Medicina que sofre a oposição de seu próprio povo por dizer a verdade.

Escorel, com seu rigor costumeiro, lembra que dois textos do personagem-tema de seu filme – “Prós e Contras” e “O Pranto dos Livros” – insemiram a narrativa do filme. “No primeiro” – explica – “Candido revê a luta contra a ditadura do Estado Novo, da qual participou de 1942 a 1945, tendo se associado à opinião liberal contra o que parecia manifestação de fascismo”. No outro, “ele imagina estar fechado em um caixão à espera de ser cremado, enquanto seus livros choram lágrimas invisíveis”.

Antonio Candido, Anotações Finais
Brasil, 2024, 87 minutos
Direção e roteiro: Eduardo Escorel
Narração: Matheus Nachtergaele
Montagem: Laís Lifschitz e Eduardo Escorel
Direção de fotografia e fotos: Carlos Ebert e Guilherme Maranhão
Produção: Superfilmes-Cinefilmes em coprodução com SescTV
Distribuição: Bretz Filmes

Antonio Candido, entre a Reflexão e a Ação

A obra de Candido (Rio de Janeiro-1918/São Paulo-2017) espalhou sua influência por dezenas de instituições universitárias e trabalhos acadêmicos.

Crítico literário, historiador e teórico da literatura, o carioca, que viveu em Minas Gerais e, a maior parte de sua vida, em São Paulo, marcou gerações de alunos da USP, onde se fez presente em disciplinas como Teoria Literária e Literatura Comparada. Integrante do Grupo Clima, ao lado de grandes intelectuais de sua geração (Paulo Emilio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Lourival Gomes Machado e Gilda de Melo e Sousa), Candido ligou-se aos ideais socialistas desde a juventude. Manteve-se fiel ao ideário de esquerda e, em 1980, foi um dos fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores).

Entre seus livros mais conhecidos e seminais estão “Formação da Literatura Brasileira, Momentos Decisivos – 1750-1880” e “Os Parceiros do Rio Bonito”, ambos publicados em 1959. Este último é a fonte de inspiração confessa da peça teatral “Na Carrêra do Divino”, escrita por Carlos Alberto Soffredini e montada sob o comando de Paulo Betti, e do filme “Marvada Carne”, de André Kotzel.

O uspiano deixou muitos livros, todos de significativa relevância – “Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero”, “Ficção e Confissão: Estudo Sobre a Obra de Graciliano Ramos”, “Tese e Antítese – Ensaios”, “Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária”, sendo o derradeiro, “O Albatroz e o Chinês” (de 2004). O brilhante pensador brasileiro morreu um ano antes das comemorações de seu centenário.

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