Por Maria do Rosário Caetano
“Coringa”, do qual “Coringa: Delírio a Dois”, estreia dessa quinta-feira, 3 de outubro, é uma continuação, colocou Todd Phillips no Olimpo do cinema industrial e artístico.
Cinco anos atrás, o filme original triunfou no Festival de Veneza, ao conquistar o Leão de Ouro, e, em seguida, receber onze indicações ao Oscar, vencendo em duas delas (melhor ator, para Joaquin Phoenix, e trilha sonora, para a nórdica Hildur Guonadóttir).
Nas bilheterias, o filme causou igual furor, mesmo obtendo classificação “R-rated” (adolescentes só acompanhados pelos pais). Ultrapassou arrecadação de 1 bilhão de dólares no mercado planetário. No Brasil foi visto por mais de 9 milhões de espectadores.
Frente a tal êxito comercial e artístico, era mais que natural que uma nova história fosse contada, tendo Joker-Coringa como o protagonista psicopata, nascido nos quadrinhos norte-americanos. Decerto sob influência longínqua do Gwynplaine, “O Homem que Ri”, de Victor Hugo.
Até detratores do novo filme de Todd Phillips hão de reconhecer a maestria de Joaquin Phoenix, esse grande ator nascido em Puerto Rico há quase 50 anos. Seu Arthur Fleck é uma soma de ossos cobertos apenas por pele baça, psicopata, trágico e apaixonado por Arlequina (Lady Gaga, em desempenho que não chega aos pés do “Napoleão” de hospício phoenixiano).
No primeiro filme, o perturbado Arthur Fleck, palhaço decidido a tornar-se astro de stand-up comedy, matava cinco pessoas (“seis”, corrigirá ele em “Delírio a Dois”, “pois matei também minha mãe”). Os primeiros assassinatos aconteceram no Metrô de Nova York e deram cabo à existência de três arrogantes servidores de Wall Street.
Depois, o palhaço desempregado mataria Randall, incômodo colega de ofício, a mãe e, de forma espetacular, Murray Franklin, apresentador de imensa fama televisiva, interpretado com o talento costumeiro por Robert De Niro. O filme, mesmo inspirado em criação de Bob Kane e colaboradores (“Batman” e sua fauna de justiceiros e respectivos anti-heróis ou vilões), nada tinha de raso ou escapista.
No novo filme, “Delírio a Dois”, Arthur Fleck encontra-se encarcerado no manicômio judiciário de Arkham, à espera de julgamento pelos crimes cometidos por seu duplo, o Coringa. Na instituição, ele encontrará o amor verdadeiro, a igualmente louca Arlequina.
No filme original, o palhaço rejeitado gostava muito de dançar (vide a badaladíssima sequência da imensa escadaria). E a trilha sonora trazia grandes momentos do jazz. Dessa vez, a música e a dança ganham ainda mais relevo. Afinal, “Coringa: Delírio a Dois” pode ser definido como uma comédia musical. Sombria e demente!, mas, ainda assim, musical e com alguma dosagem de humor. E, claro, com longas sequências de tribunal. E com destaque obrigatório para a advogada do criminoso, defendida com brilho por Catherine Keener.
A trilha sonora somará, num transe melódico, standards dos sixties, que correram mundo na voz de Frank Sinatra e intérpretes de igual calibre. E ganhará momento sublime quando Arthur Fleck cantar a versão (em inglês – “If You Go Way”) de “Ne me Quitte Pas”, do belga Jacques Brel. Quem ouviu Edith Piaf ou Maysa interpretar esse paroxístico hino ao desespero amoroso (“Não me abandone/ Eu vou cavar a terra/ até depois da minha morte/ para cobrir teu corpo/ de ouro e de luz/ Permita que eu me torne/ a sombra da tua sombra/ a sombra da tua mão/ a sombra do teu cão”) chegará perto de uma estranha epifania. Lady Gaga e Phoenix serão os intérpretes dos clássicos do jazz (e do pop).
“Delírio a Dois” é, ainda que inferior ao “Coringa” original, um grande filme. Continua sua ‘guidebordiana’ crítica à Sociedade do Espetáculo, ao mundo em que tudo se transforma em show. E, o que é notável, Phillips constrói sua narrativa sem sucumbir-se aos padrões hollywodianos (com suas tramas e seus finais escapistas).
Se o primeiro filme custou US$ 60 milhões, o de agora custou três vezes mais (US$ 190 milhões). E não buscou trilhos e veredas reconfortantes. Mesmo com uma história de amor (entre dois “sociopatas saídos do inferno”) – e ainda por cima em ritmo de musical, o mais escapista dos gêneros hollywoodianos – o que vemos é incômodo, perturbador.
O amor de Arthur Fleck, ou melhor do Coringa, por Arlequina, é narrado como um pesadelo banhado em sangue. Ou como disse um crítico francês, o que nos é oferecido é “um musical depressivo”. Outro crítico (do Le Point) lembrou que “Folie à Deux” é “uma suíte musical niilista”, triturada em ‘noir’” e distante, “muito distante, da ‘vie en rose’”. Mais uma vez, Todd Phillips prova que é possível fazer cinema de ideias (e para adultos) dentro da grande indústria.
O filme não vem repetindo o êxito de sua matriz. Levou Todd Phillips de volta à competição de Veneza, no mês passado, mas o júri comandado por Isabelle Huppert o deixou sem nenhuma láurea. Sua trajetória na festa do Oscar deve ser igualmente modesta. Se o primeiro, tão festejado, só triunfou em duas das onze indicações recebidas (o Bafta, irmão siamês do Oscar, também não morreu de amores pela história do palhaço psicopata), até o público, que delirou com o primeiro “Coringa”, parece menos entusiasmado. A compra antecipada de ingressos configura-se menos frenética. Só as bilheterias, quando realmente testadas, darão conta do real poder de fogo da dupla Joaquin Phoenix-Todd Philips.
Coringa: Delírio a Dois | Joker: Folie à Deux
EUA, 2023, 139 minutos
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Brendan Gleeson, Catherine Keener, Steve Coorgan, Harry Lawtey, Zazie Beetz, Jacob Lofland, Harry Lawtey, Leigh Gill
Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver
Fotografia: Lawrence Sher
Montagem: Jeff Groth
Apresentação (animação): Sylvain Chaumet
Trilha sonora: Hildur Guonadóttir
Classificação etária: 16 anos
Distribuição: Warner Bros.