Um dos modismos do momento no mundo acadêmico é a decolonialidade. Para quem tem a felicidade de desconhecer esse conceito, permita-me incomodá-lo: decolonialidade é um termo que foi cunhado por um grupo de intelectuais da América Latina e foi rapidamente capturado por intelectuais do chamado “Norte Global”.
O pensamento decolonial estabelece que o colonialismo não terminou com a independência política das nações colonizadas. Afirma que as estruturas de poder atuais foram impostas pelo colonialismo Todo esse processo passou a ser chamado de “colonialidade”. Entende-se que a decolonialidade é uma forma de desconstruir a colonialidade. Em suma, a decolonialidade é entendida como um projeto contínuo de libertação intelectual, cultural, política e epistemológica das “amarras” coloniais, valorizando epistemologias dos povos entendidos como marginalizados, especialmente da África e América Latina. Trata-se, claro, de mais um desdobramento do identitarismo.
Raymond Aron, em O ópio dos intelectuais, mostra como o marxismo virou o ópio dos intelectuais a partir dos anos 1950 (o autor parafraseia uma conhecida citação de Karl Marx que diz que “a religião é o ópio do povo”). Nos anos 2020, temos um novo ópio entre a intelligentsia: a decolonialidade.
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Acadêmicos de diversas áreas do conhecimento desejam “descolonizar” currículos escolares, livros etc. Clamando um “olhar” decolonial, intelectuais e ativistas estão “revisitando” a história, o idioma, a literatura, a arquitetura e tudo mais! Você encontrará vertentes decoloniais de ideologias conhecidas como “marxismo decolonial” e “feminismo decolonial”. A decolonialidade virou um nicho de mercado tão potente no velho e bom capitalismo que você encontrará até “banheiro decolonial” (estou falando sério!).
Intuitivamente, você pode achar que “descolonizar” currículos universitários, por exemplo, seja uma boa ideia. Que mal faria aos estudantes conhecerem os clássicos da literatura e novos pensadores da América Latina e da África? Nenhum! Mas, na prática, a decolonialidade não funciona por princípio de “inclusão” de novos saberes, mas por “substituição” de saberes considerados clássicos.
Estudantes da Escola de Estudos Orientais e Africanos, instituição de ensino superior da Inglaterra, exigiram que Platão, Descartes e Kant fossem eliminados do currículo de filosofia pois são homens brancos. Em A guerra contra o Ocidente, o jornalista Douglas Murray afirma que casos como o da instituição britânica deixam óbvia a intenção dos decoloniais: eles não querem fazer uma reinterpretação dos clássicos. Querem torná-los inadmissíveis. Para Murray, a decolonialidade faz parte de uma agenda anti-Ocidente.
Patrícia Silva é escritora e crítica do movimento decolonialismo | Foto: Divulgação/Patrícia Silva
Segundo os decoloniais, as misérias do Ocidente são produto do colonialismo. Se num passado recente, o grande vilão nos textos acadêmicos era o “neoliberalismo”, para a vanguarda intelectual de hoje, o vilão é o colonialismo. Numa reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a filósofa Djamila Ribeiro afirmou que a exploração sexual de crianças e jovens é consequência da ação colonizadora. Aparentemente, para os pensadores decoloniais, países sem colonização, como Portugal e Espanha, não têm a exploração sexual no quadro de suas tragédias sociais (o que eu considero difícil de acreditar!).
A aclamada pensadora portuguesa Grada Kilomba declarou, em outra reportagem da Folha, que a “a arquitetura no Brasil perpetua a violência colonial”. Ela justifica: “Entradas diferentes para corpos diferentes: a entrada da frente, para os corpos normativos, e uma porta de serviço, com um elevador de serviço, para os corpos periféricos, marginais e secundários”.
Como de costume, pensadores identitários, em suas análises, ignoram a classe social. Se não ignorasse, Kilomba rapidamente perceberia que essa divisão de entradas é pautada na lógica “entrada de serviço/entrada social”. É uma organização predial feita em dois grandes grupos: trabalhadores e não trabalhadores. Você pode pensar, a partir disso, que em países sem passado colonial, não há entradas de serviço e a arquitetura não é violenta. Kilomba esclarece que o tipo de arquitetura vista no Brasil já foi abandonado na Europa:
“Toda gente entra na mesma porta, toda gente sobe no mesmo elevador e senta na mesma cadeira.” É quase irônico ver que, ao que tudo indica, os colonizadores se descolonizaram antes do que suas colônias… E para acontecer o mesmo por aqui, no mundo periférico, precisamos importar categorias epistêmicas desenvolvidas por pensadores de países colonizadores como Michel Foucault e até mesmo de países imperialistas como bell hooks.
Os decoloniais têm uma dificuldade que merece ser demarcada: eles veem colonialismo até embaixo da cama, mas não conseguem reconhecer um governo autoritário e um colonizador de verdade. Em um passo muito parecido com o dos marxistas que procuram justificar as falhas do “comunismo real”, os decoloniais eximem organizações claramente antidemocráticas apenas por sinalizarem algum nível de rivalidade com valores ocidentais.
Nos campi dos EUA, estudantes misturam a reivindicação pela interrupção da guerra contra Israel com lemas clássicos do Hamas. Para eles, é moralmente imperativo ser contra Israel e a favor da Palestina, nem que para isso passe a proteger uma organização sabidamente terrorista.
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Em março de 2024, o presidente da França, Emmanuel Macron, esteve no Brasil assinando acordos com a Presidência da República. A França é a maior colonizadora do século 21 até o momento: como se estivesse ainda no século 18, tem bases militares em Dijibuti, Costa do Marfim, Senegal, Chade, Gabão e Níger. E emite a moeda conhecida como franco CFA para 14 de suas ex-colônias, o que garante que os países africanos permaneçam sob uma tutela complicada com a antiga metrópole.
O presidente da França, Emmanuel Macron (à esq), o presidente Lula (centro), e a primeira-dama Janja (à dir), durante cerimônia no Palácio do Planalto — 28/3/2024 | Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo
Entre os ativistas “progressistas” da África Ocidental, é comum ouvir apelos pela abolição do franco CFA. Os críticos dizem que a moeda permite que a França controle as economias dos países que o utilizam. Afirmam, ainda, que as ex-colônias de outras potências europeias são mais desenvolvidas economicamente e mais avançadas em termos democráticos.
Até 2019, por exemplo, a França exigia que os africanos que usavam o franco CFA depositassem 50% de suas reservas cambiais no Tesouro francês, em troca de uma taxa de câmbio garantida com o euro. A permanência da França nos territórios africanos é fruto de interesses econômicos, estratégicos e políticos. Eles precisam do petróleo do Gabão, do urânio do Níger e do cacau da Costa do Marfim.
Os noticiários dão conta que esses países africanos estão em alta tensão com o Estado francês. Considerando isso, espera-se que o movimento decolonial produzisse notas de repúdio ou algo do tipo à presença de Macron em territórios como a Amazônia brasileira. Não foi o que aconteceu. Macron ofereceu um jantar e convidou a elite brasileira e, entre os presentes, estava a filósofa Djamila Ribeiro, que não hesitou em tirar foto sorridente com o maior colonizador da África Ocidental hoje (mas ela disse que não há diálogo com o bolsonarismo porque o governo Bolsonaro teria representado o retrocesso para “mulheres, negros etc”).
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Ou seja, a decolonialidade é mais uma teoria que morre na prática e serve, apenas, para legitimar os interesses epistemológicos, políticos e ideológicos de uma nova elite intelectual. Os decoloniais são, basicamente, colonizadores que chegaram atrasado.
Por Patrícia Silva. Escritora, comunicadora e pedagoga.